Pense nos filhos que você não tem

Decidi relativamente cedo que não quero casar e nem ter filhos: aos 20 anos. E de todos os argumentos legítimos que existem e que embasam as escolhas individuais (e as vezes até matrimoniais) de não ter filhos, como o desgaste emocional e financeiro ou os problemas fisiológicos causados por uma gravidez, vim aqui defender o mais niilista de todos eles: ter filhos é cruel para seus próprios filhos.
Pessoas têm filhos, e pior: pessoas aparentemente gostam de ter filhos. E por incrível que pareça para a minha mente, algumas dessas pessoas até escolhem engravidar! Minha mãe, assim como muitas mulheres da geração dela e das gerações anteriores à dela, tiveram filhos basicamente na mesma faixa etária em que eu escolhi não tê-los nunca - se não até mais cedo do que isso.
Mamãe engravidou de mim quando tava no meio da faculdade. E eu fui planejadíssima. Sim, teve um belo dia em que a mamãe, estudante do quarto semestre da licenciatura, parou e pensou "que tempo maravilhoso para se ter um bebê!
Hoje em dia já existe uma conscientização de que ter um filho exige muito mais do que a vontade de ter um filho, o que suscita a discussão que trago nesse texto: a natalidade só existe porque existe vaidade também. Penso que ter filhos é como usar casacos de pele: um luxo de quem tem condições de pagar por eles, e ainda assim, não deixa de ser um item profundamente desnecessário.
Como eu posso explicar de uma forma clara? Bom, para começar... Ter filhos é ruim para o planeta. É tão recorrente o fato de que a os números demográficos crescem geometricamente desde 1800 mais ou menos. Então pra quê ter filhos? Pra deixar descendentes? Perpetuar a espécie humana? O mundo já borbulha deles. Mais do que gente no planeta, só os bois e vacas pra alimentar toda essa gente. Não é a toa que a agropecuária é a forma mais eficaz de destruir ecossistemas e acelerar o efeito estufa. Mas olha, a finalidade do texto nem é uma abordagem ecológica e, apesar de que esse é um dos mais bem fundamentados argumentos para não ter filhos, vamos adiante.
Coletivamente falando, ter filhos é ruim porque a vida em sociedade é dura. Não vivemos num mundo feito para ter filhos (crianças são muito mais sujeitas a violências e abusos, bem como acontece com os idosos), e dependendo da sua localização geográfica, escolher não ter um filho é o maior ato de amor que você pode ter por ele. Não ter filho neste país é uma das melhores formas de prezar pela segurança do meu filho que não existe. Aplicando este pensamento para todos os outros serviços essenciais, cuja prestação é cada vez mais precarizada, paradoxalmente, não ter um filho é a melhor forma de oferecer bem-estar a ele.
Sendo assim, ter um filho sem pensar no lugar em que ele vai existir e coexistir - seja em relação ao meio ambiente ou às instituições sociais, políticas e econômicas -,  é um grande indicador inicial que você não está preparado para ser pai/mãe.
No entanto, é útil esclarecer que este texto não é destinado às mulheres que não têm acesso a contraceptivos ou políticas de natalidade, ou mesmo às mulheres que engravidam de forma não planejada e vivem em lugares onde o aborto é ilegal.
Mas eu só estou elencando todos esses pontos e contrapontos óbvios para alicerçar o principal motivo que tem me feito pensar de uma forma tão indignada e incessante sobre trazer alguém à vida: acima de tudo isso que escrevi reside o fato de que, ao nascermos humanos, imbuídos de sensações e sentimentos, consciência e raciocínio, recebemos também nosso maior cavalo de troia, o ônus da nossa existência: nós sofremos e nós sentimos dor. Nos cansamos e adoecemos. Nós morremos.
Embora - pelo menos até onde eu posso dizer através das minhas observações cotidianas e coloquiais -, a grande maioria das pessoas parecerem não pensar tanto na morte (apesar da ciência de que somos finitos e perecíveis), eu realmente não sei como não encontro ao andar na rua, ao ir para a faculdade, ao chegar no trabalho, no ônibus, nas praças, humanos paralisados por crises existenciais causadas pela natureza generalista e implacável do nosso destino mortal.
Não sei porquê as pessoas ainda se dão ao trabalho de estudar e de trabalhar e de andar de ônibus e de acordar cedo sabendo que vão morrer mais cedo ou mais tarde. Nem eu mesma sei porque continuo fazendo isso também. É como se a humanidade fosse uma grande multidão que, de tão tumultuada e cheia, se move por critérios próprios, como uma mola. Nos movemos juntos para lugar nenhum.
Percebo que as pessoas simplesmente não pensam na morte, e o fato de eu lembrar com tanta frequência dela me faz entender porque é melhor não pensar muito nisso.
Ao contrário dessas pessoas eu confesso que possuo um absurdo medo da morte. Pessoalmente, não penso no pós; ao invés disso, temo aquele momento do se dar conta. O momento de perceber e de sentir que é o fim. A morte me aterroriza porque ela clareia e dói.
Alguns dias atrás, portanto, cheguei a conclusão que deu origem a todo esse breve compêndio de devaneios sobre minha decisão de não ter filhos: sou incapaz de pôr no mundo alguém que vai morrer.
Decidir trazer alguém à vida é, inevitavelmente, oferecer-lhe a morte: dar à luz é, tragicamente, disponibilizar os fusíveis que desligam as lâmpadas em seguida.
Ter filhos é vaidoso e causa dor.
Um casaco de pele.