Nossou


O pensamento é um descer de escadas na madrugada. Mas os passos não são seus. Você estava dormindo debaixo do edredom. E mora sozinho. Sua casa nem segundo andar tem. O que eu posso dizer? Álcool e antidepressivos não dá muito bom juntos.
Quando eu sonho eu invento estórias mirabolantes e meu subconsciente suplica sobre o quanto aquele plot pode me inspirar a escrever de novo. Faz tanto tempo que não publico nada. É até um pouco triste. O que você faz? Alguém me pergunta há um, dois anos atrás. Eu sou escritora, eu respondo. Faço umas artes de vez em quando também.
Não produzi nenhum texto ou ilustração no último ano.
O que você faz? Alguém me pergunta hoje. Eu sou assistente administrativa. Atualmente eu tô em stand by até segunda ordem. Sem ir pro escritório por conta da quarentena do coronavírus, e já faz alguns meses. Mesmo assim, continuo sendo assistente administrativa. Mas dá pra ser ex-escritora? Dá pra ser ex-artista?
Com muito espaço sobrando no relógio, resolvi dar uma arrumada no feed do Instagram. Para que quem visitasse meu perfil soubesse exatamente de quem eu me tratava. Nas fotos mais antigas, algumas artes produzidas para divulgar eventos, outras criações visuais. Um post comemorativo da minha primeira crônica publicada num jornal daqui do estado. Depois, muitas e muitas sellfies. Sempre sozinha, sem muita coisa nova para mostrar senão o corte ou a cor do cabelo. Comecei a arquivar as fotos menos relevantes para mim e a maioria das selfies sumiram do perfil. O que restou foi um monte de produções que, embora autorais, a essa altura do campeonato, já diziam muito pouco sobre mim. Que merda amorfa foi essa que eu me tornei.
Não quero dizer que artistas e pessoas que produzem têm uma existência menos miserável que o resto de nós. Merdas todos somos, tristes todos somos, e bostas de vida pelo menos a maioria de nós temos. Mas como é bom fazer algo com toda a feiúra e o fedor que somos obrigados a cheirar e ver.
A esse ponto eu já venho considerando a existência artística também como alimentar-se das obras dos outros, apesar de eu já estar completamente cheia de um nada que não me permite dizer e nem provocar porra nenhuma em ninguém.
Tenho feito uma lista com todos os longa-metragens que assisti desde o início da quarentena, e já estou em torno dos setenta. Eu sugo e sofro e não há nada que me encha mais de prazer do que assistir um filmaço bom da porra. E não vou escrever crítica nenhuma (ao menos por hora), porque não quero. É isso, não quero. Tem uma pandemia acontecendo agora mesmo, cara. Não me faça pensar no futuro por que, para mim, não há.
Sobre o rolê dos sonhos que eu disse, o negócio é real. Minha mente sente algo estranho porque sabe que eu ficar sem escrever não é muito normal. E a esse ponto eu já não sei se eu e minha mente somos exatamente a mesma coisa. Você já pensou nessa possibilidade? Não sou eu que desço a escada. Eu só quero dormir.