Duas garotas e um copo

Josélia Luísa sentiu, subitamente, uma grande vontade de fazer cocô. Era sábado de manhã e a universidade estava quase que completamente vazia, não fosse por sua turma que estava tendo aula. Entrou no banheiro, que estava vazio também. Graças a Deus, pensou ela, vou poder cagar em paz. Protegeu o assento do vaso com várias camadas de papel higiênico para que não pegasse nenhuma infecção daquelas meninas que davam para qualquer um que encontravam na rua e usavam o mesmo banheiro que ela. Porcas. Escolheu o único compartimento sanitário que tinha fechadura e sentou-se no vaso.
Josefa Raquelle era adepta de fazer cocô apenas em casa. Sentia-se mais confortável cagando no seu próprio banheiro. Mas essa era uma situação de urgência, emergência até, já que sentiu a barriga fermentar repentinamente no meio da aula daquela bela manhã de sábado. Pelo menos a turma dela era a única da instituição inteira que estava tendo aula e não teria mais ninguém no banheiro. Poderia cagar em paz.
Josélia Luísa já tinha começado a fazer cocô quando ouviu a zoada da porta do banheiro abrindo e chocando-se contra a parede rapidamente. Arregalou os olhos. Alguém vai me ouvir cagar. Ficou tão nervosa que, de repente, seu cocô, que estava saindo de forma tranquila, começou a ficar duro e vir em bolinhas. Tinha que fazer um esforço gigante para que as bolinhas saíssem. Desesperou-se. Vou acabar peidando de tanto fazer força e a pessoa que está aqui vai escutar. Ficou tão assustada que bateu com o braço no porta papel higiênico de alumínio, que caiu ruidosamente na lajota.
Josefa Raquelle sentou no vaso, agoniada, sem nem ao menos limpá-lo antes, deixando a bunda e as coxas molharem num pouco de xixi alheio que havia lá. A dor na barriga era tanta que ela nem ligou para este detalhe. De repente, ouviu um estrondo metálico vindo de outro sanitário. Merda! Alguém vai me saber que estou cagando só pelo cheiro!
Josélia Luísa sentiu-se numa situação sem saída. A cada três minutos, as bolinhas de cocô duras caiam no vaso, fazendo um som ridículo. Blup. Um minuto. Blup. Um minuto. Blup. Já estava suando frio de nervoso. Não poderia fugir do banheiro tendo cagado só pela metade e, se saísse, podia dar de cara com a acompanhante indesejada no banheiro, e acabaria sendo pega em flagrante cometendo aquele crime insalubre de cagar em horário laboral. Decidiu terminar, esperar a outra menina ir embora e só depois sair do seu compartimento sanitário, trancado e seguro.
Josefa Raquelle suava frio de dor de barriga. Tentava, com esforço, manter a bunda desgovernada dentro do vaso e a mão segurando a porta para que não abrisse (pois só tinha um buraco redondo preenchido com papel higiênico dobrado no lugar da fechadura); tudo isso ao mesmo tempo em que abria o orifício anal de forma que permitisse aliviar-se sem fazer barulho ou causar extremo odor. De repente, assustou-se com o barulho de um enorme peido vindo do outro sanitário, fazendo-a desconcentrar-se do controle do seu esfíncter e acabou cagando tudo o que tinha que cagar na vida inteira num só jato de merda. Preciso vazar daqui, pensou Josefa Raquelle, morrendo de vergonha. Limpou-se e saiu depressa em direção a porta do banheiro.
Blup. Um minuto. Blup. Um minuto. Então, um estrondo. Como ela mesma profetizou, Josélia Luísa acabou se peidando no vaso. A partir desse momento era a cagona anônima do banheiro na cabeça da outra pessoa que também estava no banheiro. Mas era isso: precisava continuar anônima. Resolveu ficar lá até que ouvisse a porta do banheiro fechar-se novamente, indicando que tinha voltado a ficar sozinha no ambiente. Então ouviu um estrondo vindo do outro sanitário e imediatamente sentiu um cheiro podre intenso pairar ao seu redor. Não conseguiria ficar ali sem vomitar. Em fuga, limpou-se e saiu correndo em direção a porta do banheiro, para que a outra cagona anônima não a visse e elas acabassem deixando de ser cagonas anônimas uma para a outra.
Josélia Luísa deu de cara com Josefa Raquelle, cada uma saindo de seu respectivo sanitário praticamente no mesmo minuto. As duas entreolharam-se. Eram as pessoas que menos falavam-se naquela turma. Direcionaram-se à pia do banheiro e lavaram as mãos (e só lavaram porque estavam na companhia uma da outra - ninguém lava a mão depois de ir no banheiro se estiver sozinho).
Nenhuma palavra foi dita. Enfim deixaram o banheiro e voltaram para a aula.
Levaram aquele segredo para o túmulo.

Conchas de feijão, conchas de vênus

Alguns funcionários do restaurante universitário são responsáveis por servir a comida no bandejão. Maria serve macarrão. Lúcia serve arroz. Cláudio serve feijão. José serve proteína. Antônio serve salada. Joana serve sobremesa.
Cláudio sorria para mim todos os almoços.
Quer dizer, eu só sabia que ele sorria porque seus olhos sorriam também.  Os olhos eram a única parte nua em relação ao resto do rosto, dada a obrigatoriedade do uso da mascára descartável e da touca. O riso em si, nunca confirmei. Mas as maçãs pronunciadas não mentem.
Não sei dizer se, para mim, ele seria minha monalisa ou contrário dela. O sorriso que é um enigma. Os olhos que riem. Quase, quase, quase deboche. A gioconda peita a gente. Ri de todos nós através do vidro à prova de balas.
Mas esse sorriso, o sorriso da minha concha de feijão, que tem braços e que tem olhos que riem, e que tem duas fileira de dentes que não aparecem nunca; importante dizer: esse riso não é romântico. Não é nem predador e nem animalesco. Não é nem mesmo sexual.
É como se ele dissesse. Você é muito bonita. Bonita e gostosa como todas as outras meninas daqui. E eu sou muito galanteador e divertido. Olha como eu tô sorrindo pra você. Olha, olha, olha.
Só não tenha mais atitude do que eu, senão fico tímido.
Não responda às minhas investidas: essa é a graça.
E eu não faço nada senão reagir com uma gargalhada; que não é amor e nem é vontade de fazer sexo. É que esse riso desse rapaz, atrás desse expositor e dessa mascára de tnt, torna o dia engraçado demais. Quem flerta no almoço? Quem flerta atrás de um expositor de comida? Quem flerta vestido de auxiliar de cozinha? Ele deve se achar muito interessante.
É como se ele fosse aquele aluno da turma que faz piadas com a própria ridicularidade. O bobo altruísta do almoço. Ele é um empréstimo da vida naïf àquele estabelecimento e àquelas normas.
Ele é um personagem no meio desse cotidiano enfileirado, com hora pra começar e terminar e porções pré-definidas para servir. Minha monalisa grafitada, assalariada e proletária.
Obrigada, Cláudio, pelas conchas feijão a mais, que como as conchas mitológicas, sustentam eu e suas outras vênus platônicas e acadêmicas.

Trote

Dizem que é sempre fácil identificar quem é calouro: basta observar no campus quem ainda possui brilho nos olhos. No entanto, na minha universidade existia uma senhora muito mais consumida pela dureza da vida do que qualquer acadêmico veterano que divide as atividades diárias entre estágio e tcc.
Antes de ouvir boatos sobre a senhorinha - extremamente humilde, manca e noventa e cinco por cento cega -, avistei-a pela primeira vez enquanto me dirigia ao restaurante universitário.
Ela vinha em direção contrária a que eu ia, acompanhada de uma estudante de enfermagem ou medicina (tava de jaleco branco), que guiava a idosa segurando-a por um dos braços. A expressão de sua face morena e enrugada dava a entender que ela estava prestes a desabar em prantos a qualquer momento; os olhos fechadinhos e a boca aberta, numa súplica silenciosa e desdentada. A velhinha parecia arrastar-se ao lado da moça - pude calcular que levava no mínimo cinco segundos para dar cada passo.
Logo pensei que, se a acadêmica tivesse ajudando-a a sair do campus, ela perderia no mínimo quatro aulas de anatomia humana ou farmacologia. Ainda bem que eu não tinha encontrado a anciã coxa antes da moça, senão provavelmente eu teria que perder o almoço para ajudá-la. Que coisa horrível de se pensar. Mas é verdade.
Nessa mesma época houve uma comoção em massa na universidade. Foi organizado até uma campanha de doação de dinheiro e alimentos à idosa que, segundo os boatos que ouvi, foi pedir esmolas de sala em sala no bloco do curso de direito. A pobrezinha chegou lá e, em meio a seu sofismo soluçante, urinou-se toda na frente de uma das turmas, derramando todo o seu sofrimento pelas pernas, inundando o chão, o vade mecum, e a consciência dos acadêmicos de vergonha e compaixão. Disseram que só nessa turma ela arrecadou quase duzentos paus.
Ainda bem que ela soube escolher o curso certo para pedir colaboração. Se tivesse ido nas licenciaturas...
Um dia, indo para a faculdade, às seis e quarenta e cinco da manhã, o ônibus em que eu estava passou bem na frente de um bar, daqueles bem decadentes. Observei o boteco despretensiosamente através da janela. A música alta (um brega muito animado) que tocava lá, tornou-se grave subitamente, tão rápido que meu ônibus estava, permitindo a mim apenas um vislumbre da cena do bar, quer dizer, não exatamente no bar, mas daquela senhorazinha safada cujo rebolado testemunhei, completamente aterrada.
Bom, pelo menos a saúde da velhinha parecia intacta: andava e enxergava muito bem - rodopiava pelo bar enquanto equilibrava um copo de cerveja numa das mãos.
Admito que fiquei meio balançada a levar este segredo para o túmulo. Me senti, de certo modo, culpada por ter visto a idosa na sua malemolência; por ter olhado para fora do ônibus no momento do seu remelexo e até mesmo de ter ido estudar tão cedo naquela manhã, presenciando, assim, o seu gingado fraudulento. No entanto, resolvi escrever para a página do facebook da minha universidade para alertar as pessoas sobre a falcatrua da anciã. Foi nesse momento que fiquei ainda mais aturdida: o moderador da página me respondeu que, só nesse dia, tinha recebido mais de vinte mensagens sobre o assunto, incluindo fotos e até vídeos da senhora dançarina, em anexo.
Pouco tempo depois, a notícia foi publicada na página, com o dado adicional de um acadêmico que morava próximo a esse bar (que aliás, fica basicamente na mesma rodovia do nosso campus - esse foi o erro da pilantra), dizendo que já tinha visto a velhinha pagar pelos serviços sexuais de um rapaz que vendia bombom e cigarros perto do boteco.
Depois desse desmascaramento público, que ocorreu mais ou menos na metade do ano passado, a idosa sumiu do campus porque ninguém ajudava ela mais. No entanto, iniciozinho desse ano, quando entro pelo portão da universidade, dou de cara com ela de novo. Eu entrando e ela saindo, acompanhada por dois calouros. Ela não tinha desistido de sua personagem: mantinha os olhinhos fechados, imitando cegueira (e até uma certa fotofobia), e a boca aberta, desdentada e dramática. Cada um dos mocinhos segurava uma de suas frágeis mãozinhas morenas e enrugadas, escoltando pacientemente o calvário dos passos da atriz, um do lado e o outro doutro.
Bem, aqui na minha universidade é ainda mais fácil de identificar quem é calouro: basta observar quem cai na farsa da velhinha humilde, manca e noventa e cinco por cento cega.

A revolta da gotinha

Eu estava quieta na fila, segurando a mão do meu pai. Minha feição beirava o desinteresse. No entanto, era quase impossível manter-me alheia à neblina conspiratória que pairava mais ou menos um metro acima do solo. Uns diziam que a história das gotinhas era só uma estratégia para evitar um motim causado pelo medo de injeções: quando sentássemos no colo dos nossos pais, puxariam os nossos braços e enfiariam longas, grossas e dolorosas agulhas. Outros, mais ansiosos, diziam que as tais gotinhas eram altamente letais e aquela era uma fila direto para a morte.
Ouvi os rumores como quem escuta um noticiário de bem longe. Algumas das crianças tentavam comunicar-me, sob a submissão das mãozinhas dadas com as de seus pais, que estavam assassinando pirralhos naquela manhã ensolarada e que nós seríamos os próximos. Perguntei ao meu pai o que era tudo aquilo; ele me disse, cordial, que aqueles moleques eram muito medrosos, diferente de mim, ele frisou. Suas palavras deram-me colhões e até um certo orgulho. Mantive-me calma enquanto observava a agoniação e o pânico das outras crianças. Selvagens.
A única coisa que separava a fila de crianças e seus pais do interior da tenda de vacinação era uma espécie de pano branco, que encortinava todas as laterais da tenda, deixando uma pequena fenda na frente para permitir a entrada e saída dos pacientes e dos agentes de saúde presentes na campanha. O sol estava muito quente e o pano branco tornava-se quase transparente em contato com a iluminação solar. Certamente a cor ajudava a tenda a não absorver tanto calor do sol, mas o pano não conseguia cobrir muita coisa, sendo possível verificar, através dele, a movimentação dos borrões antropomórficos que caminhavam lá dentro de um lado para o outro.
A paranoia infantil generalizada tornava-se cada vez mais difícil de ignorar a medida em que eu me aproximava da abertura da tenda. Comecei a escutar choros desesperados e gritos molecais ecoando de lá. Atrevi-me a dar uma olhadela pela abertura. A cena de que fui testemunha me aterrorizou profundamente: um dos meus estava sendo claramente torturado pela mulher da vacina, que segurava com brutalidade sua pequena e frágil mandíbula. E pior: o próprio pai da criança segurava seus dois braços com a agressividade da aspereza de seus punhos adultos e masculinos. Não, pior! Como o pano que cobria a tenda, um ser igualmente branco observava aquele holocausto com um sorriso psicótico, que ia de um lado do rosto ao outro - observe: eu não disse de "orelha a orelha" pois esta aparição não as tinha. Sua cabeça pontuda dava-me a impressão de que ele ateava fogo em crucifixos para passar o tempo.
Determinada, supus estar tudo sob controle. Tinha chegado a minha vez. Entrei na tenda em câmera lenta. Papai sentou na cadeira e me pôs em seu colo. Percebi que os olhos daquela assombração alva fitavam-me, e o pavor incubado dentro do meu minúsculo ser extinguiu qualquer expectativa paterna de eu ser a única criança a não ter uma crise de pânico no recinto.
Nesse momento, pareceu-me legítimo lançar mão daquele instinto de sobrevivência que, naquela manhã, unia todo os moleques num só, com suas resistências agudas e esperneios finos. Vi-me, então, fugindo em desespero, correndo pela minha pequena vida, deixando para trás meu pai, a tenda, a mulher da vacina e, especialmente, aquela criatura herética, que permaneceu lá, parada - enquanto todos os outros adultos corriam atrás de mim -, regozijando-se de todo sofrimento infantil que emanava naquele local, com seus olhos vidrados e a bocarra sorridentendemente assustadora, numa espécie de júbilo sanitário e sarcástico.