Malaise

Eu sinto uma frequência. Como uma daquelas frequências sonoras que são inaudíveis ao ser humano.
Essa frequência atinge meu corpo horizontalmente e vibra. 
Vibra tão pequeno que as vezes me questiono se ela está vibrando ou não.
Denomino-a "o mal-estar". Já faz algum tempo que essa frequência discreta atravessa-me pelo estômago. 
E vibra. 
Vibra pequena e latente. Malaise. Acho que prefiro chamá-la assim. Malaise me soa muito bem. Me lembra Malásia. E, sabe-se lá porquê, a Malásia me lembra praia. Eu imagino que estou numa praia paradisíaca da Malásia, numa espreguiçadeira, observando o mar. Então, sorrateiramente, a frequência minúscula me eletrifica os ossos e me enjoa o estômago - tão molecular que fico intimidada a reclamar.
Ao longe, vejo minhas pernas. Dois palitinhos morenos apontados para o horizonte. Como essas pernas são finas e sozinhas! Olha só como elas são sozinhas. Dá até pena do tanto que elas são sozinhas.
Paro. Preciso me concentrar em relaxar. Estou numa praia magnífica, preciso relaxar. É isso o que as pessoas fazem na praia, não é? É isso o que fazem quando deitam na cama e é isso o que fazem quando saem para se divertir.
Mas onde eu moro não há praia e nem mar; já não consigo mais sair para me divertir e, deitada na cama, eu ainda sinto. Quase imperceptível. O malaise. Ma-lai-se. Ouço imediatamente o sopro do vento e o barulho que as gaivotas fazem. Eu não sei se existem gaivotas nas praias da Málasia, mas eu ouço ao fundo. Lá estou eu novamente. Tomando sol, um chapéu de palha, um biquíni azul. A praia, deserta. A frequência. Um zunido que eu não sei dizer se é "ziiim" ou se é "zuuum". Aliás, não sei nem se estou ouvindo-o de verdade ou de mentirinha. Mas lá está ele. Como um dispositivo de pontaria a laser apontado bem no meu estômago. Serei baleada? Sou um alvo?
Mas não há ninguém nessa praia. Atrás de mim e da minha espreguiçadeira, uma mata fechada. A areia uniforme, o mar balançante - mas não aterrorizante -, e a mata fazendo seu papel de mata. E o laser apontado para a minha barriga. Aguardo, como se eu fosse capaz disso.
Passam quatro dias e nada acontece. Passam quarenta dias e nada. Passam 40 anos.
Acordo.
Pela janela de casa vejo várias árvores nativas da Malásia.
Atravesso a rua e os carros buzinam o grasnar das gaivotas.
Vou à faculdade de biquíni azul.

Sobre ser uma pessoa extremamente materna (meu texto de dia das mães)

Existem pessoas e existem pessoas maternas.
Não confunda com ser uma pessoa maternal, com "L" no final: uma pessoa maternal é uma pessoa com tendência a ser uma boa mãe ou pai, enquanto a pessoa materna é uma pessoa inclinada a viver lateralmente a um de seus progenitores (ou dos dois).
Digo que uma pessoa maternal pode ser um bom pai também porque não existem progenitores paternais. Sério, não tem. Talvez não se conheça o instinto paternal porque ele nunca está, nunca fica, sempre vai embora. E porque o instintos de paternalidade não são exclusivos do homem e nem os de maternidade são exclusivos da mulher. Os bons pais só são bons pais porque, acima de tudo, são maternais. Não dá pra ser um bom pai sem agir como uma mãe. Um bom pai só é bom pai mesmo (não tô falando do rapaz que faz o mínimo das coisas que precisa fazer para seus filhos e muitas vezes são considerados bons só porque pagam pensão ou, em casos mais obscuros, ajudam até nas tarefas domésticas. Olha só que moços prendados!) se fazer coisas de mãe. Assim como uma mãe é ruim se fizer coisas de pai. É incrível como essa máxima é implacável.
Mas apesar dessas conceituações iniciais, tô aqui mesmo é pra falar dos filhos. Seria muita pretensão dizer que poucas pessoas são maternas? É que pra mim, parece que sim. Talvez porque nunca tenha conhecido de perto pessoas tão maternas quanto eu sou. Pra mim não há nenhuma graça em realizar um grande feito se não contar primeiro pra minha mãe. "Mãe, passei em primeiro lugar pra artes visuais e em design também". "Mãe, passei em último lugar pra Direito, mas não vou cursar, desculpa. Espero que fique feliz só por eu ter passado mesmo". "Mãe, dei uma palestra hoje pra a gigantesca multidão de 12 pessoas. Quase morro do coração". "Mãe, olha esse desenho que eu fiz". "Mãe, raspei o cabelo". "Mãe, lê minha última crônica". E ela só vai ler umas três semanas depois, que é quando finalmente processa todas as coisas que eu digo. Mamãe reclama que eu falo tanto que, depois de três ou mais camadas do inception que é os assuntos que eu falo, ela se perde entre o papo de queimar o arroz e tentar produzir um chiclete vegano com jaca verde.
Uma vez, quando eu era criança e interpretava o famigerado e clichê papel da formiguinha que morre na neve numa peça da escola, mesmo após os aplausos iniciais, eu não disse a primeira fala até enxergar mamãe na plateia. E quando eu tava na grande pro show dos The Strokes e precisava contar pra alguém onde eu tava e quanto o aperto de estar numa multidão de sete pessoas magricelas por metro quadrado é uma das sensações mais horríveis e indescritíveis que eu já vivi na vida, eu liguei pra quem? Pra mamãe, óbvio.
Sem mamãe, até sair pra tomar umas cervejinhas ou viajar, fica chato demais. Sem drama. Eu espero que mamãe não morra antes de mim, porque senão... vai ser monótono. Que graça vai ter fazer algo legal sem contar pra ela? Graça nenhuma. Pra quem eu vou recomendar filmes que eu gosto? Ou indicar artistas e livros bons? Não faço a menor ideia. Esse texto tá ficando até meio triste agora. Mas olha, importante dizer que ser uma pessoa materna está bem longe de ser uma pessoa mimada. Aliás: ser uma pessoa materna é lavar a própria cueca, fazer a própria comida e arrumar o próprio quarto. Ser uma pessoa materna, essencialmente, consiste em não ficar enchendo o saco da sua mãe sem necessidade.
Durante minha criação, mamãe nunca manteve as situações mamão-com-açúcar pra mim. Acho que na vida toda nunca fui acordada para ir estudar, por exemplo. Já ouvi casos de gente que perdeu a prova do concurso porque a mãe esqueceu de acordar as belas adormecidas na data e na hora certa. Mesma coisa eu digo dos filhos que tem outros filhos e a avó que tem que pagar pensão ou reparar o moleque infernal o dia todo. Um absurdo. A galera do facebook fica na pira dizendo que pais são abusivos sem perceber que os filhos também são, tanto quanto os pais. Na realidade, relações humanas são sempre problemáticas, e as relações entre pais e filhos podem residir entre as mais difíceis - o que é proporcional a flexibilidade de pais e filhos um para com o outro. Penso que esse até seja o motivo de a adolescência do filhos ser a época mais instável nas relações parentescas com os pais: ambos os lados acham estar fazendo as coisas certas em serem inflexíveis na hora de defender suas atitudes, as quais acreditam serem as esperadas e corretas do agir como um adolescente e do agir como um adulto.
É possível, afinal, que ser uma pessoa materna seja só o polo sul de um polo norte. Ser uma pessoa maternal é saber amar e ser uma pessoa materna é saber ser amado. Mas paradoxalmente, saber ser amado também é uma forma de amar o outro. Talvez seja até um jeito que amorteça a dor de quem ama, pois, acima de tudo, ser mãe dói. Ser mãe não possui gratificações. Mãe adora inventar que é bom ser mãe. Se a mamãe ler essa última declaração, vou levar um tapa na mesma hora. Mas é verdade. Ser mãe é ruim, se preocupar não dá descanso, cuidar é responsabilidade demais, alimentar é caro. Ser mãe é ruim, ruim, ruim. Mas é menos pior se tratamos elas com a relevância que tratamos um ser humano comum, um ser que não é nossa mãe, fora de qualquer necessidade de favores, material ou mimada. A mãe muitas vezes é reduzida à sua instrumentalidade, perde a autonomia humana só porque gerou alguém. A realidade é que eu desconheço coisa melhor do que sentar com a mãe pra tomar uma cerveja e discutir sobre coisas que nós duas queremos e gostamos de falar.
Ser uma pessoa materna é, acima de tudo, ser recíproca: essa coisa que a galera do facebook também adora.

Para minha mamãe, que me inspirou a me aprofundar nos estudos da arte (embora preferia que eu cursasse direito). Risos.

Pense nos filhos que você não tem

Decidi relativamente cedo que não quero casar e nem ter filhos: aos 20 anos. E de todos os argumentos legítimos que existem e que embasam as escolhas individuais (e as vezes até matrimoniais) de não ter filhos, como o desgaste emocional e financeiro ou os problemas fisiológicos causados por uma gravidez, vim aqui defender o mais niilista de todos eles: ter filhos é cruel para seus próprios filhos.
Pessoas têm filhos, e pior: pessoas aparentemente gostam de ter filhos. E por incrível que pareça para a minha mente, algumas dessas pessoas até escolhem engravidar! Minha mãe, assim como muitas mulheres da geração dela e das gerações anteriores à dela, tiveram filhos basicamente na mesma faixa etária em que eu escolhi não tê-los nunca - se não até mais cedo do que isso.
Mamãe engravidou de mim quando tava no meio da faculdade. E eu fui planejadíssima. Sim, teve um belo dia em que a mamãe, estudante do quarto semestre da licenciatura, parou e pensou "que tempo maravilhoso para se ter um bebê!
Hoje em dia já existe uma conscientização de que ter um filho exige muito mais do que a vontade de ter um filho, o que suscita a discussão que trago nesse texto: a natalidade só existe porque existe vaidade também. Penso que ter filhos é como usar casacos de pele: um luxo de quem tem condições de pagar por eles, e ainda assim, não deixa de ser um item profundamente desnecessário.
Como eu posso explicar de uma forma clara? Bom, para começar... Ter filhos é ruim para o planeta. É tão recorrente o fato de que a os números demográficos crescem geometricamente desde 1800 mais ou menos. Então pra quê ter filhos? Pra deixar descendentes? Perpetuar a espécie humana? O mundo já borbulha deles. Mais do que gente no planeta, só os bois e vacas pra alimentar toda essa gente. Não é a toa que a agropecuária é a forma mais eficaz de destruir ecossistemas e acelerar o efeito estufa. Mas olha, a finalidade do texto nem é uma abordagem ecológica e, apesar de que esse é um dos mais bem fundamentados argumentos para não ter filhos, vamos adiante.
Coletivamente falando, ter filhos é ruim porque a vida em sociedade é dura. Não vivemos num mundo feito para ter filhos (crianças são muito mais sujeitas a violências e abusos, bem como acontece com os idosos), e dependendo da sua localização geográfica, escolher não ter um filho é o maior ato de amor que você pode ter por ele. Não ter filho neste país é uma das melhores formas de prezar pela segurança do meu filho que não existe. Aplicando este pensamento para todos os outros serviços essenciais, cuja prestação é cada vez mais precarizada, paradoxalmente, não ter um filho é a melhor forma de oferecer bem-estar a ele.
Sendo assim, ter um filho sem pensar no lugar em que ele vai existir e coexistir - seja em relação ao meio ambiente ou às instituições sociais, políticas e econômicas -,  é um grande indicador inicial que você não está preparado para ser pai/mãe.
No entanto, é útil esclarecer que este texto não é destinado às mulheres que não têm acesso a contraceptivos ou políticas de natalidade, ou mesmo às mulheres que engravidam de forma não planejada e vivem em lugares onde o aborto é ilegal.
Mas eu só estou elencando todos esses pontos e contrapontos óbvios para alicerçar o principal motivo que tem me feito pensar de uma forma tão indignada e incessante sobre trazer alguém à vida: acima de tudo isso que escrevi reside o fato de que, ao nascermos humanos, imbuídos de sensações e sentimentos, consciência e raciocínio, recebemos também nosso maior cavalo de troia, o ônus da nossa existência: nós sofremos e nós sentimos dor. Nos cansamos e adoecemos. Nós morremos.
Embora - pelo menos até onde eu posso dizer através das minhas observações cotidianas e coloquiais -, a grande maioria das pessoas parecerem não pensar tanto na morte (apesar da ciência de que somos finitos e perecíveis), eu realmente não sei como não encontro ao andar na rua, ao ir para a faculdade, ao chegar no trabalho, no ônibus, nas praças, humanos paralisados por crises existenciais causadas pela natureza generalista e implacável do nosso destino mortal.
Não sei porquê as pessoas ainda se dão ao trabalho de estudar e de trabalhar e de andar de ônibus e de acordar cedo sabendo que vão morrer mais cedo ou mais tarde. Nem eu mesma sei porque continuo fazendo isso também. É como se a humanidade fosse uma grande multidão que, de tão tumultuada e cheia, se move por critérios próprios, como uma mola. Nos movemos juntos para lugar nenhum.
Percebo que as pessoas simplesmente não pensam na morte, e o fato de eu lembrar com tanta frequência dela me faz entender porque é melhor não pensar muito nisso.
Ao contrário dessas pessoas eu confesso que possuo um absurdo medo da morte. Pessoalmente, não penso no pós; ao invés disso, temo aquele momento do se dar conta. O momento de perceber e de sentir que é o fim. A morte me aterroriza porque ela clareia e dói.
Alguns dias atrás, portanto, cheguei a conclusão que deu origem a todo esse breve compêndio de devaneios sobre minha decisão de não ter filhos: sou incapaz de pôr no mundo alguém que vai morrer.
Decidir trazer alguém à vida é, inevitavelmente, oferecer-lhe a morte: dar à luz é, tragicamente, disponibilizar os fusíveis que desligam as lâmpadas em seguida.
Ter filhos é vaidoso e causa dor.
Um casaco de pele.

Duas garotas e um copo

Josélia Luísa sentiu, subitamente, uma grande vontade de fazer cocô. Era sábado de manhã e a universidade estava quase que completamente vazia, não fosse por sua turma que estava tendo aula. Entrou no banheiro, que estava vazio também. Graças a Deus, pensou ela, vou poder cagar em paz. Protegeu o assento do vaso com várias camadas de papel higiênico para que não pegasse nenhuma infecção daquelas meninas que davam para qualquer um que encontravam na rua e usavam o mesmo banheiro que ela. Porcas. Escolheu o único compartimento sanitário que tinha fechadura e sentou-se no vaso.
Josefa Raquelle era adepta de fazer cocô apenas em casa. Sentia-se mais confortável cagando no seu próprio banheiro. Mas essa era uma situação de urgência, emergência até, já que sentiu a barriga fermentar repentinamente no meio da aula daquela bela manhã de sábado. Pelo menos a turma dela era a única da instituição inteira que estava tendo aula e não teria mais ninguém no banheiro. Poderia cagar em paz.
Josélia Luísa já tinha começado a fazer cocô quando ouviu a zoada da porta do banheiro abrindo e chocando-se contra a parede rapidamente. Arregalou os olhos. Alguém vai me ouvir cagar. Ficou tão nervosa que, de repente, seu cocô, que estava saindo de forma tranquila, começou a ficar duro e vir em bolinhas. Tinha que fazer um esforço gigante para que as bolinhas saíssem. Desesperou-se. Vou acabar peidando de tanto fazer força e a pessoa que está aqui vai escutar. Ficou tão assustada que bateu com o braço no porta papel higiênico de alumínio, que caiu ruidosamente na lajota.
Josefa Raquelle sentou no vaso, agoniada, sem nem ao menos limpá-lo antes, deixando a bunda e as coxas molharem num pouco de xixi alheio que havia lá. A dor na barriga era tanta que ela nem ligou para este detalhe. De repente, ouviu um estrondo metálico vindo de outro sanitário. Merda! Alguém vai me saber que estou cagando só pelo cheiro!
Josélia Luísa sentiu-se numa situação sem saída. A cada três minutos, as bolinhas de cocô duras caiam no vaso, fazendo um som ridículo. Blup. Um minuto. Blup. Um minuto. Blup. Já estava suando frio de nervoso. Não poderia fugir do banheiro tendo cagado só pela metade e, se saísse, podia dar de cara com a acompanhante indesejada no banheiro, e acabaria sendo pega em flagrante cometendo aquele crime insalubre de cagar em horário laboral. Decidiu terminar, esperar a outra menina ir embora e só depois sair do seu compartimento sanitário, trancado e seguro.
Josefa Raquelle suava frio de dor de barriga. Tentava, com esforço, manter a bunda desgovernada dentro do vaso e a mão segurando a porta para que não abrisse (pois só tinha um buraco redondo preenchido com papel higiênico dobrado no lugar da fechadura); tudo isso ao mesmo tempo em que abria o orifício anal de forma que permitisse aliviar-se sem fazer barulho ou causar extremo odor. De repente, assustou-se com o barulho de um enorme peido vindo do outro sanitário, fazendo-a desconcentrar-se do controle do seu esfíncter e acabou cagando tudo o que tinha que cagar na vida inteira num só jato de merda. Preciso vazar daqui, pensou Josefa Raquelle, morrendo de vergonha. Limpou-se e saiu depressa em direção a porta do banheiro.
Blup. Um minuto. Blup. Um minuto. Então, um estrondo. Como ela mesma profetizou, Josélia Luísa acabou se peidando no vaso. A partir desse momento era a cagona anônima do banheiro na cabeça da outra pessoa que também estava no banheiro. Mas era isso: precisava continuar anônima. Resolveu ficar lá até que ouvisse a porta do banheiro fechar-se novamente, indicando que tinha voltado a ficar sozinha no ambiente. Então ouviu um estrondo vindo do outro sanitário e imediatamente sentiu um cheiro podre intenso pairar ao seu redor. Não conseguiria ficar ali sem vomitar. Em fuga, limpou-se e saiu correndo em direção a porta do banheiro, para que a outra cagona anônima não a visse e elas acabassem deixando de ser cagonas anônimas uma para a outra.
Josélia Luísa deu de cara com Josefa Raquelle, cada uma saindo de seu respectivo sanitário praticamente no mesmo minuto. As duas entreolharam-se. Eram as pessoas que menos falavam-se naquela turma. Direcionaram-se à pia do banheiro e lavaram as mãos (e só lavaram porque estavam na companhia uma da outra - ninguém lava a mão depois de ir no banheiro se estiver sozinho).
Nenhuma palavra foi dita. Enfim deixaram o banheiro e voltaram para a aula.
Levaram aquele segredo para o túmulo.

Conchas de feijão, conchas de vênus

Alguns funcionários do restaurante universitário são responsáveis por servir a comida no bandejão. Maria serve macarrão. Lúcia serve arroz. Cláudio serve feijão. José serve proteína. Antônio serve salada. Joana serve sobremesa.
Cláudio sorria para mim todos os almoços.
Quer dizer, eu só sabia que ele sorria porque seus olhos sorriam também.  Os olhos eram a única parte nua em relação ao resto do rosto, dada a obrigatoriedade do uso da mascára descartável e da touca. O riso em si, nunca confirmei. Mas as maçãs pronunciadas não mentem.
Não sei dizer se, para mim, ele seria minha monalisa ou contrário dela. O sorriso que é um enigma. Os olhos que riem. Quase, quase, quase deboche. A gioconda peita a gente. Ri de todos nós através do vidro à prova de balas.
Mas esse sorriso, o sorriso da minha concha de feijão, que tem braços e que tem olhos que riem, e que tem duas fileira de dentes que não aparecem nunca; importante dizer: esse riso não é romântico. Não é nem predador e nem animalesco. Não é nem mesmo sexual.
É como se ele dissesse. Você é muito bonita. Bonita e gostosa como todas as outras meninas daqui. E eu sou muito galanteador e divertido. Olha como eu tô sorrindo pra você. Olha, olha, olha.
Só não tenha mais atitude do que eu, senão fico tímido.
Não responda às minhas investidas: essa é a graça.
E eu não faço nada senão reagir com uma gargalhada; que não é amor e nem é vontade de fazer sexo. É que esse riso desse rapaz, atrás desse expositor e dessa mascára de tnt, torna o dia engraçado demais. Quem flerta no almoço? Quem flerta atrás de um expositor de comida? Quem flerta vestido de auxiliar de cozinha? Ele deve se achar muito interessante.
É como se ele fosse aquele aluno da turma que faz piadas com a própria ridicularidade. O bobo altruísta do almoço. Ele é um empréstimo da vida naïf àquele estabelecimento e àquelas normas.
Ele é um personagem no meio desse cotidiano enfileirado, com hora pra começar e terminar e porções pré-definidas para servir. Minha monalisa grafitada, assalariada e proletária.
Obrigada, Cláudio, pelas conchas feijão a mais, que como as conchas mitológicas, sustentam eu e suas outras vênus platônicas e acadêmicas.

Trote

Dizem que é sempre fácil identificar quem é calouro: basta observar no campus quem ainda possui brilho nos olhos. No entanto, na minha universidade existia uma senhora muito mais consumida pela dureza da vida do que qualquer acadêmico veterano que divide as atividades diárias entre estágio e tcc.
Antes de ouvir boatos sobre a senhorinha - extremamente humilde, manca e noventa e cinco por cento cega -, avistei-a pela primeira vez enquanto me dirigia ao restaurante universitário.
Ela vinha em direção contrária a que eu ia, acompanhada de uma estudante de enfermagem ou medicina (tava de jaleco branco), que guiava a idosa segurando-a por um dos braços. A expressão de sua face morena e enrugada dava a entender que ela estava prestes a desabar em prantos a qualquer momento; os olhos fechadinhos e a boca aberta, numa súplica silenciosa e desdentada. A velhinha parecia arrastar-se ao lado da moça - pude calcular que levava no mínimo cinco segundos para dar cada passo.
Logo pensei que, se a acadêmica tivesse ajudando-a a sair do campus, ela perderia no mínimo quatro aulas de anatomia humana ou farmacologia. Ainda bem que eu não tinha encontrado a anciã coxa antes da moça, senão provavelmente eu teria que perder o almoço para ajudá-la. Que coisa horrível de se pensar. Mas é verdade.
Nessa mesma época houve uma comoção em massa na universidade. Foi organizado até uma campanha de doação de dinheiro e alimentos à idosa que, segundo os boatos que ouvi, foi pedir esmolas de sala em sala no bloco do curso de direito. A pobrezinha chegou lá e, em meio a seu sofismo soluçante, urinou-se toda na frente de uma das turmas, derramando todo o seu sofrimento pelas pernas, inundando o chão, o vade mecum, e a consciência dos acadêmicos de vergonha e compaixão. Disseram que só nessa turma ela arrecadou quase duzentos paus.
Ainda bem que ela soube escolher o curso certo para pedir colaboração. Se tivesse ido nas licenciaturas...
Um dia, indo para a faculdade, às seis e quarenta e cinco da manhã, o ônibus em que eu estava passou bem na frente de um bar, daqueles bem decadentes. Observei o boteco despretensiosamente através da janela. A música alta (um brega muito animado) que tocava lá, tornou-se grave subitamente, tão rápido que meu ônibus estava, permitindo a mim apenas um vislumbre da cena do bar, quer dizer, não exatamente no bar, mas daquela senhorazinha safada cujo rebolado testemunhei, completamente aterrada.
Bom, pelo menos a saúde da velhinha parecia intacta: andava e enxergava muito bem - rodopiava pelo bar enquanto equilibrava um copo de cerveja numa das mãos.
Admito que fiquei meio balançada a levar este segredo para o túmulo. Me senti, de certo modo, culpada por ter visto a idosa na sua malemolência; por ter olhado para fora do ônibus no momento do seu remelexo e até mesmo de ter ido estudar tão cedo naquela manhã, presenciando, assim, o seu gingado fraudulento. No entanto, resolvi escrever para a página do facebook da minha universidade para alertar as pessoas sobre a falcatrua da anciã. Foi nesse momento que fiquei ainda mais aturdida: o moderador da página me respondeu que, só nesse dia, tinha recebido mais de vinte mensagens sobre o assunto, incluindo fotos e até vídeos da senhora dançarina, em anexo.
Pouco tempo depois, a notícia foi publicada na página, com o dado adicional de um acadêmico que morava próximo a esse bar (que aliás, fica basicamente na mesma rodovia do nosso campus - esse foi o erro da pilantra), dizendo que já tinha visto a velhinha pagar pelos serviços sexuais de um rapaz que vendia bombom e cigarros perto do boteco.
Depois desse desmascaramento público, que ocorreu mais ou menos na metade do ano passado, a idosa sumiu do campus porque ninguém ajudava ela mais. No entanto, iniciozinho desse ano, quando entro pelo portão da universidade, dou de cara com ela de novo. Eu entrando e ela saindo, acompanhada por dois calouros. Ela não tinha desistido de sua personagem: mantinha os olhinhos fechados, imitando cegueira (e até uma certa fotofobia), e a boca aberta, desdentada e dramática. Cada um dos mocinhos segurava uma de suas frágeis mãozinhas morenas e enrugadas, escoltando pacientemente o calvário dos passos da atriz, um do lado e o outro doutro.
Bem, aqui na minha universidade é ainda mais fácil de identificar quem é calouro: basta observar quem cai na farsa da velhinha humilde, manca e noventa e cinco por cento cega.

A revolta da gotinha

Eu estava quieta na fila, segurando a mão do meu pai. Minha feição beirava o desinteresse. No entanto, era quase impossível manter-me alheia à neblina conspiratória que pairava mais ou menos um metro acima do solo. Uns diziam que a história das gotinhas era só uma estratégia para evitar um motim causado pelo medo de injeções: quando sentássemos no colo dos nossos pais, puxariam os nossos braços e enfiariam longas, grossas e dolorosas agulhas. Outros, mais ansiosos, diziam que as tais gotinhas eram altamente letais e aquela era uma fila direto para a morte.
Ouvi os rumores como quem escuta um noticiário de bem longe. Algumas das crianças tentavam comunicar-me, sob a submissão das mãozinhas dadas com as de seus pais, que estavam assassinando pirralhos naquela manhã ensolarada e que nós seríamos os próximos. Perguntei ao meu pai o que era tudo aquilo; ele me disse, cordial, que aqueles moleques eram muito medrosos, diferente de mim, ele frisou. Suas palavras deram-me colhões e até um certo orgulho. Mantive-me calma enquanto observava a agoniação e o pânico das outras crianças. Selvagens.
A única coisa que separava a fila de crianças e seus pais do interior da tenda de vacinação era uma espécie de pano branco, que encortinava todas as laterais da tenda, deixando uma pequena fenda na frente para permitir a entrada e saída dos pacientes e dos agentes de saúde presentes na campanha. O sol estava muito quente e o pano branco tornava-se quase transparente em contato com a iluminação solar. Certamente a cor ajudava a tenda a não absorver tanto calor do sol, mas o pano não conseguia cobrir muita coisa, sendo possível verificar, através dele, a movimentação dos borrões antropomórficos que caminhavam lá dentro de um lado para o outro.
A paranoia infantil generalizada tornava-se cada vez mais difícil de ignorar a medida em que eu me aproximava da abertura da tenda. Comecei a escutar choros desesperados e gritos molecais ecoando de lá. Atrevi-me a dar uma olhadela pela abertura. A cena de que fui testemunha me aterrorizou profundamente: um dos meus estava sendo claramente torturado pela mulher da vacina, que segurava com brutalidade sua pequena e frágil mandíbula. E pior: o próprio pai da criança segurava seus dois braços com a agressividade da aspereza de seus punhos adultos e masculinos. Não, pior! Como o pano que cobria a tenda, um ser igualmente branco observava aquele holocausto com um sorriso psicótico, que ia de um lado do rosto ao outro - observe: eu não disse de "orelha a orelha" pois esta aparição não as tinha. Sua cabeça pontuda dava-me a impressão de que ele ateava fogo em crucifixos para passar o tempo.
Determinada, supus estar tudo sob controle. Tinha chegado a minha vez. Entrei na tenda em câmera lenta. Papai sentou na cadeira e me pôs em seu colo. Percebi que os olhos daquela assombração alva fitavam-me, e o pavor incubado dentro do meu minúsculo ser extinguiu qualquer expectativa paterna de eu ser a única criança a não ter uma crise de pânico no recinto.
Nesse momento, pareceu-me legítimo lançar mão daquele instinto de sobrevivência que, naquela manhã, unia todo os moleques num só, com suas resistências agudas e esperneios finos. Vi-me, então, fugindo em desespero, correndo pela minha pequena vida, deixando para trás meu pai, a tenda, a mulher da vacina e, especialmente, aquela criatura herética, que permaneceu lá, parada - enquanto todos os outros adultos corriam atrás de mim -, regozijando-se de todo sofrimento infantil que emanava naquele local, com seus olhos vidrados e a bocarra sorridentendemente assustadora, numa espécie de júbilo sanitário e sarcástico.

O velho da encruzilhada

Já era quase madrugada. Uma tempestade muito forte tinha rompido algumas linhas de transmissão de energia elétrica há algumas horas, deixando o bairro completamente no escuro. Por sorte, a lua estava cheia, e iluminava o suficiente para que Rafa e Tito enxergassem as bordas dos copos de alumínio e a boca da garrafa de vodka que tinham aberto pouco antes do apagão.
Era uma das sexta-feiras que os dois costumavam sair para beber. Mas nesse dia, a chuva só permitiu que eles se deslocassem, no máximo, até a frente da própria casa. Empurraram o sofá de dois lugares da sala e uma mesinha para o pátio, e começaram a tomar uma vodka que estava esquecida no fundo da geladeira.
Eles odiavam vodka. Quem (não-russo) gosta? Tinham comprado a garrafa há meses atrás para a festa de aniversário do Tito. A ideia era fazer batida de morango. Mas tinha muita cerveja na ocasião e nenhum dos convidados lembrou de querer a vodka.
Na sexta tediosa, eles lembraram. Se acomodaram no pátio e encheram os copos. Nenhuma viva alma na rua. Tudo escuro. Deram o primeiro gole. Que bebida horrível.
- Essa vodka tá me dando um sono... Olha essa chuvinha maravilhosa. Boa de dormir. - Disse Rafa.
Lá fora trovoava.
- Pior. - Concordou Tito. - Mas o ar-condicionado só vai funcionar depois que voltar a energia.
Rafa assentiu tristemente, em silêncio. Dormir naquele calor seria impossível. 
Sem energia elétrica e totalmente entediados, começaram a contar histórias de terror. Falaram sobre a fazenda Myrtles, em Louisiana, que hoje é uma pousada, com visita guiada pelo prédio sobre os principais fantasmas do local. Falaram também da mansão Winchester, uma casa assombrada que era submetida a constantes reformas a fim de confundir os fantasmas. Lembraram que O Exorcismo de Emily Rose foi baseado em fatos reais. Comentaram sobre a suposta maldição do Edifício Joelma e os assassinatos que aconteceram no local antes do famoso incêndio. Falaram sobre a engenhosidade e crueldade da preparação dos atiradores do massacre de Columbine. E as encruzilhadas! Moravam no canto de uma. Esse ponto sujeito à despachos, bruxarias e, quiçá, pacto com o tinhoso. E agora já eram quase três da manhã, a hora do capeta. Credo em cruz.
Os dois nem tinham medo de histórias de terror. Só que, sozinhos no pátio de uma casa, de frente pra uma rua totalmente deserta e uma vizinhança de residências silenciosas, todo mundo fica meio cagão.
Enquanto Tito servia seu copo e o de Rafa e tentava lembrar de mais casos macabros, Rafa observava a paisagem. Sob a fosca luz da lua que atravessava fracamente as nuvens do céu noturno, do outro lado da rua, pensou enxergar alguém. Semicerrou os olhos, já meio zonzo, esforçando-se pra discernir algo por entre as gotas grossas da chuva. Forçou bem a vista. Não era nada.
- Que foi, Rafa? - Perguntou Tito, oferecendo o copo de bebida. Rafa pegou o copo, deu um gole. Já descia como água.
- Nada. Pensei ter visto algo. - Deu uma gargalhada - Eu tô muito chapado. - Disse olhando para Tito, sorrindo. Rafa voltou os olhos para a rua novamente.
- PUTA MÃE DE DEUS!
- Que foi, doido? - Tito tomou um susto com o sobressalto de Rafa.
- Tem um velho do outro lado da rua! A porra de um velho assustador! - Apontou com mão que segurava o copo para o outro lado da rua. Chacoalhava o braço e apontava o dedo, derramando um pouco de vodka fora do copo. - De terno e segurando a porra de uma bengala do capeta! - Descreveu Rafa, quase gaguejando.
- Que porra é essa, Rafa? Do que tu tá falando?
Rafa pôs as duas mãos no rosto do Tito e virou-o em direção aonde o velho estava. Gritou de novo, à beira de um colapso nervoso.
- Olha pra lá, caralho!
Tito olhou. Forçou bem a vista. Não viu nada. Ficou preocupado com o namorado.
- Rafa, vamo entrar? A gente já bebeu demais. A gente nem é acostumado a beber vodka. Vamo dormir, tá tarde.
Tito tomou o copo da mão do Rafa e levantou do sofá. Disse:
- Vem, me ajuda a carregar de volta pra sala.
Rafa continou sentado. Ficou mais indignado com Tito do que com a suposta aparição demoníaca em forma de velho.
- Tu acha que eu tô bêbado, seu filho da puta?
Para os bêbados, não há acusação pior do que acharem que eles estão bêbados. Tito fez uma cara feia. Alterado, Rafa apontou de novo para o velho:
- Como tu não tá vendo aquele velho do mal ali? Olha a bengala, cara! O terno, cara, olha o terno!
Mas Tito não via nada. Rafa, impaciente, puxou Tito pelo braço, falando:
- Vamos embora daqui. Um velho de terno e bengala, às três horas da manhã, próximo a uma encruzilhada? Coisa boa não é, Tito! Deixa essa porra desse sofá aí e vamos entrar. Deus me livre e guarde.
Do outro lado da rua, um advogado recém aposentado, praguejava, segurando um guarda-chuva fechado. Já havia ligado para a companhia elétrica mais de 13 vezes naquela madrugada. Toda hora ele saía e entrava em casa, numa agoniação infernal para verificar se os filhos da puta dos eletricistas já tinham vindo resolver o problema da energia.
Ninguém dorme em paz sem ar-condicionado.

O coquinho

No meu aniversário de 15 anos, ganhei uma garrafinha de coquinho baiano de uma das minhas amiguinhas do colégio. Nessa época eu dava muito uma Lindsay Lohan do rolê mas a realidade é que quando se trata de assuntos alcoólicos eu sou uma negação. Eu obviamente não ia conseguir tomar aquilo tudo no momento em que ganhei e jogar fora a garrafa buchudinha de plástico não estava nos planos, afinal, não deixava de ser um presente. Mas onde que eu vou guardar isso? Na geladeira, próximo ao pacote de linhaça da minha mãe, talvez? Ou no cooler do meu pai, quem sabe?
Quando cheguei em casa a primeira coisa que fiz foi tirar a minha vênus de willendorf etílica da mochila e enfiei no bolso de um casaco entre os cabides enfileirados do meu guarda-roupa.
Que esconderijo clichê. Clichê e ridículo, porque, entre todas as roupas encabideiradas e esguias, era evidente que havia um casaco canceroso no meio. Ele tinha um tumor guardado no bolso. Vênus não podia ficar lá.
Meu quarto nesse dia (e em todos os outros) estava extremamente bagunçado e cheio de roupas e sacolas e sujeira pelo chão. Peguei uma sacola daquelas que a gente usa pra dar presentes (presentes de verdade, não coquinhos baianos), coloquei a buchudinha dentro e deixei a sacola deitadinha de baixo da cama. Nem um pouco clichê também.
Cheguei a conclusão que um quarto não é um lugar muito original de se esconder coisas.
De qualquer forma, o coquinho não era tão bebível quanto parecia. Deixei lá mesmo e não pensei mais nele.
Alguns dias depois, após voltar da aula ao meio-dia, percebo que ganhei serviço de quarto. Minha mãe, extremamente incomodada pela minha falta de asseio em meu aposento, arrumou e limpou tudo. Eu mal reconheci minhas acomodações quando abri a porta. Fui imediatamente procurá-la para agradecer e... Pu-ta-que-pa-riu! O coquinho!
Volto correndo em direção ao quarto que nem um jato por cima das nuvens. Me joguei no chão igual quem foge de bala perdida e forcei bem a vista pra enxergar cada perímetro escuro debaixo daquela cama (ela é daquelas que não tem muito espaço embaixo, que é pra nenhum espírito se esconder de noite). Não tinha nada. Nem espírito, nem o coquinho e nem a sacola para presentes onde guardei o coquinho.
Ouço mamãe me chamar. É hoje que eu sinto meu couro queimar. Ao invés disso, ela me manda comer e me arrumar porque vamos na igreja. A comida descia pela minha garganta como areia. Será que ela vai me levar pra alguém rezar em cima da minha cabeça?
Passo a tarde toda tentando não olhar nos olhos da mulher que possivelmente sabe a minha culpa. Olho para o altar e vejo Jesus me encarando com olhos julgamentais. Devo deixar ela tocar no assunto ou eu começo me explicando? Com a cara lisa, tento puxar um assunto maroto. Err... mãe, obrigada por ter arrumado meu quarto... Mas ela não dizia nada. E eu estava tão nervosa que não conseguia nem pensar numa desculpa mais engolível do que aquele coquinho.
Voltamos pra casa.
Eu fiquei desolada, sentindo-me falha na missão de resguardar minha cachaça das vistas parentescas. Me arrasto até o chão novamente. Olho embaixo da cama novamente. Nada. Resolvo pegar uma vassoura. Passo ela levemente sobre a superfície debaixo do meu leito.
Deveria existir um nome para designar o barulho do rolar de uma garrafa de plástico.
Rownl, rownl, rownl, rownl, rowln...
Vênus rola até mim como quem pede um beijinho no pescoço.
Suponho que, na hora, de forma muito rápida - como uma faxina exige - mamãe deve ter visto a sacola deitada debaixo da cama em vez de puxá-la pelas alças, puxou pela bundinha de papelão.
Certeza que meu pileque rolou em sentido contrário ao da direção em que a sacola foi puxada, indo parar no fundo da cama.
Um segundo para respirar e no outro já botava a buchudinha na mochila para desová-la. Jogo num canto qualquer da rua e dou-lhe um chute lá pá putaqueopariu. Presente é uma porra.
Alguns meses depois acompanho a mamãe num evento de caridade da igreja. Ela me manda entregar algumas peças de roupas usadas para uma moça que estava arrecadando as doações.
Advinha em que sacola que tava.

Amor de Gemaque

A vida tá tão ruim. Tá tão ruim há tanto tempo. Desde que passei a me entender por gente a vida é ruim. Tomara que o tempo passe rápido. Tomara que fevereiro acabe logo e chegue março. Mas março também vai ser ruim.
A vida foi boa no rolê do bar do seu Gemaque e também foi boa quando acompanhei o Juan fazendo compras no supermercado. A cerveja tava tão gelada e ele estava tão lindo. Mas agora a vida continua ruim. A gente não consegue mais reunir a galera toda no barzinho e o Juan foi embora. O Juan foi embora e nem se despediu de mim. Depois que o Juan foi embora eu baixei até o Tinder. Encontrei o Juan no Tinder. Homem é uma desgraça mesmo.
Eu odeio Tinder, mas nem é porque o Juan tá lá procurando por mulheres muito menos bonitas do que eu. Tem alguma coisa naquele bate-papo que age gravitacionalmente para que nenhum diálogo se estenda por muito tempo. Você precisa ir pro whatsapp com urgência, antes que a vontade do seu match desvaneça que nem a fumaça de um café requentado.
Encontrei dois amores no Tinder em menos trinta minutos. Meu coração virou pulmão e respirou duas vezes. Expirou duas vezes também. Achei que amor de Juan fosse breve, mas você conhece amor de Tinder? Se bem que já ouvi falar de amor de Tinder que durou muito mais do que amor de Juan. Amor de Juan é que dói.
O barzinho do Gemaque é o único lugar da cidade, além da minha casa, ao qual pertenço. Seu Gemaque sabe meu nome, sabe a marca de cerveja que eu tomo e sente minha falta se eu não aparecer. As coisas no seu Gemaque são sempre iguais. A gente sabe sempre tudo o que vai acontecer e sabe quantas cervejas vai dar conta de tomar. Da última vez que vi Juan, levei-o lá. Da primeira vez que vi Juan também levei-o lá. Os romances da vida real são previsíveis como uma ida ao Gemaque. A gente sabe do fim.
O cara 1 que dou match no Tinder é a cara do Juan. Meu subconsciente só pode estar de sacanagem. Não me envolvo mais com turista também - descubro que o cara 1 só veio pra conhecer a amazônia e já já vai embora. Mas tem o cara 2. Ele é gato, nativo, e não parece com o Juan. Entretanto se veste igual um hipsterzinho de merda. Como que eu vou levar no seu Gemaque um cara que usa gravata borboleta? Peço por telepatia pra que Juan volte. Com suas sandálias havaianas e cabelos meio desamarrados pra me encontrar no Gemaque às 19h (esperando pacientemente meu atraso). Mas ele não vem.
Perco o interesse no cara 1, o cara 2 perde o interesse em mim e o Juan foi embora. Só o seu Gemaque é quem fica.
Mas o seu Gemaque é casado.

Os sinais (que não são sinais)

Acredito que existem dois tipos de pessoas no planeta Terra. Dividir entre crentes (que nesse texto não possui carga semântica religiosa canônica mas sim sobre pessoas que acreditam que existe algo maior que nós, seja o que for), e não-crentes seria radical demais, portanto, vou dividi-las em otimistas e pessimistas. O que vai muito além de acreditar em deuses ou destinos ou não acreditar em nada.

História 1

Quando eu tinha 12 anos eu comecei a jogar Habbo (uma comunidade online parecida com Second Life, mas mais infantil), e lá eu conheci um menino chamado .:Decode:. (não julgue o rapaz - nicknames são sempre vergonhosos e essa foi a época do boom da saga Crepúsculo. Para os desavisados, Decode é o nome de uma música do Paramore que faz parte da da trilha sonora do filme). Ele tinha uns 14 anos na época, morava em São Paulo, e foi o meu primeiro amor.
Nós éramos amigos (virtuais) inseparáveis, até que ele começou a namorar com uma moça que conheceu no Habbo. Foi aí que o meu coração partiu-se pela primeira vez. Obviamente, no entanto, eu sabia que eu era o amor da vida dele porque, a relação que eu e ele tínhamos, o fato de nos conhecermos justamente naquela época, naquela rede social, entre todos os outros habbianos online, (na minha mente) não tinha como não
ser destino.
Ele e a moça namoraram um bom tempo, até ele descobrir que ela era um fake e que o real tutor do avatar da namorada dele era, na verdade, um garoto. Pelo menos ele tinha a mesma idade do .:Decode:. e não era um pedófilo (a gente sempre tem que ver as coisas pelo lado bom). 
Na época, o .:Decode:. era o que eu mais amava na vida, mas ser uma criança de 12 anos perdidamente apaixonada é uma mistura perigosa. Com essa idade eu gostava muito de, como se dizia antigamente, "surfar na internet". Numa dessas navegações eu encontrei uma página de esoterismo e uma vidente online cuja primeira consulta era grátis. Respondi umas perguntas místicas sobre data de nascimento e e-mail e me inscrevi no site. 
Apesar da idade eu não me iludi com a promessa da primeira consulta grátis - até receber um e-mail da vidente. Eu basicamente só lembro de uma frase do longo texto da Mãe Diná: "você tem uma forte ligação com a cidade de São Paulo". Pronto. Isso obviamente era um sinal. Eu sabia que ele era o amor da minha vida.
Eu perdi o contato com o .:Decode:. (porque depois de velho ninguém brinca mais no Habbo), mas eu ainda tinha ele na lista de amigos do facebook. Quando surgiu a oportunidade de eu visitar São Paulo pela primeira vez, a primeira coisa que veio na minha mente foi "era isso que a vidente queria me dizer esse tempo todo".
É esse ano que eu caso.
Mandei mensagem pro rapaz anunciando que sua amiga de longa data pretendia visitá-lo em breve.
Até hoje ele não respondeu. 
Demorou quase dez anos pra eu perceber que o boy não nasceu para mim e que, os sinais, que eu jurava serem legítimos, significavam, na verdade, porra nenhuma.
No planeta Terra eu tô no grupo 1 dos não-crentes e no 1.2 dos não-crentes pessimistas. Tem os não-crentes otimistas também (grupo 1.1) mas eu tô bem longe dessa galera - e eu acho que ela é, de fato, bem diminuta.
Os crentes, por sua vez, me parecem ser muito otimistas porque não tem nada mais otimista pra mim do que acreditar que nós temos algum propósito no universo. Contudo, eu diria que o mais perto que já vi de um crente pessimista são aquelas pessoas que acreditam em astrologia ou em alguma doutrina como o espiritismo. Carma negativo e reencarnação é creepy.
Mas o ser humano é iludido mesmo. A gente pega ônibus com o crush duas vezes no mesmo dia em horários arbitrários e já começa um cineminha mental futurístico de vocês dois discutindo qual vai ser a música da festa de casamento ou de você brigando com elx por que elx te traiu - dependendo da sua saúde mental/emocional.
O pior é que é possível enxergar falsos sinais e padrões errôneos (se é que existem sinais verdadeiros e ordem na entropia) em praticamente todos os processos cotidianos da nossa vida. É tipo quando você aprende uma nova palavra e depois disso parece que escuta/lê ela em vários lugares. Ou quando você machuca o dedo e, do nada, passa a topar com ele em todas as quinas dos móveis.
O negócio é quando, depois do encontro no busão, você nunca mais pega o mesmo coletivo com o crush.
Ou até pega, mas vocês nunca se falam.
Ou vocês se falam, mas ele não quer ficar com você. Porque ele gosta de outra pessoa ou porque não te achou atraente.
Ou ele quer ficar com você, mas vocês não dão certo juntos.
Ou vocês dão certo, mas um agente externo estraga tudo.
Ou nada estraga tudo e vocês ficam juntos - até o primeiro de vocês dois morrer.
É como se desse errado até quando desse certo.

História 2

Existe um motivo pelo qual a filósofa de botequim que vos fala dividiu as pessoas do planeta Terra em dois (otimistas e pessimistas) e não em três (otimistas, pessimistas e realistas). Acho que ser pessimista, em um grau maior ou menor, implica em ser realista também. A famosa lei de Murphy não é sobre azar - é sobre como as coisas funcionam para a maioria dos humanos. 
As pessoas pessimistas são realistas porque a realidade é pessimista na maior parte do tempo. Realismo é você entender que o número de estrelas no céu é muito grande e que, invariavelmente, elas podem formar
desenhos porque você evoluiu para reconhecer padrões. Isso explica também porque as pessoas veem o rosto de Jesus Cristo até num cocô de pombo (pareidolia).
Falando nisso, uma vez fui num retiro espiritual recreativo nas férias. Fiquei empolgada porque tinha trilha nas atividades da programação. Mal sabia eu que essa seria a única coisa agradável em toda a minha estadia.
Todos os dias tinha culto/missa às sete da matina, grupo de oração, dancinhas/festinhas com música gospel e palestras com posicionamentos muito pouco cristãos, se é que vocês me entendem. Também não tinha água pra beber e nem pra tomar banho e eu não conseguia cagar lá, parecia que Deus tava me olhando. Foi o caos completo para mim.
Os seis primeiros dias foram os piores. Eram sete dias no total. A ficha caiu logo no primeiro dia: eu ia me arrepender profundamente de ter colocado o pé naquele ônibus de turismo. Quando me dei conta, eu já estava num mato sem cachorro (literalmente). O problema é que quando se está no meio do nada o tempo demora absurdamente pra passar. No segundo dia eu já estava enlouquecendo. 
No terceiro dia eu tive uma crise de gastrite e de dor de barriga por causa do cocô acumulado e fui num quartinho verde claro com uma plaquinha na porta escrito "pronto-socorro" com letrinhas coloridas de e.v.a.
Entrei e tinha uma mulher com a maior cara de doida e que se dizia técnica em enfermagem. Ela me deu um omeprazol e mandou uma mulher rezar em cima da minha barriga. 
As sessões de oração em grupo se repetiam viciosamente e, sinceramente, não teve nada que me fizesse discernir os dias que se passavam porque tudo era igual o tempo todo. É por isso que nos interiores a galera vê muito fantasma - é porque nunca tem nada pra fazer.
Perdi a noção do tempo até o sexto dia, onde duas coisas importantes aconteceram: a trilha na mata (aleluia!) e a Efusão. Eu vou colocar a definição de efusão que encontrei na wikipedia: "a Efusão no Espírito Santo segundo a Renovação Carismática Católica é uma experiência que normalmente decorre de um momento de oração e pela qual a pessoa adquire um novo e apurado senso de valor espiritual". Eu não sabia até estar lá no meio e descobri da pior forma possível: a efusão é um ritual em que as pessoas começam a desmaiar e a se tremer (nem sempre nessa ordem). Teve um cara grandão que desmaiou lá e não queria mais acordar (mesmo após o término do ritual) e quatro homens juntos não deram conta de carregar o cara até a pseudo-enfermaria. Ele teve que se acordar sozinho.
Durante o labashuria tem umas pessoas que chegam bem sensual no teu ouvido e te jogam alguma liga (dizem que é uma revelação do Espírito Santo pra sua vida). Tenho que admitir que na hora fiquei neurada. O cara falou sobre a minha homossexualidade (algo que na época nem eu mesma tinha admitido).
O bom de ser agnóstico é que apesar de nada ainda ter se mostrado digno de crença, a gente continua de braços abertos. Fiquei anos matutando sobre o ocorrido até me tocar de um detalhe que eu não tinha levado em conta: com 16 anos eu me vestia igual um menino. Tinha cabelo estilo joãozinho e tudo mais. Aquilo não foi uma revelação, foi uma dedução. Bem heteronormativa, por sinal.
Já vi anjo anunciar gravidez de virgens mas anunciar sapatonice eu nunca vi.
A tal revelação foi tão generalista quanto as previsões dos horóscopos são - e por isso dão tão certo com todo mundo - ou quase todo mundo.
No final, o retiro só serviu pra eu desenvolver prisão de ventre e me fazer ter certeza de que eu era gay.
Se Deus disse, quem sou eu pra discordar?

O pedantismo cultural de cada dia

Muita coisa mudou depois da primeira vez que eu ouvi alguém dizer a palavra "pedante". É incrível como muita gente escrota deixaria, ou, pelo menos, diminuiria seu nível de escrotisse se refletisse sobre o significado dessa palavra. Digo isso porque eu fui essa pessoa.
Eu me considero inteligente mas o pedantismo em mim me fazia acreditar que eu era muito especial por causa disso. O próprio conceito de inteligência é muito vago, de fato. Assim como o de cultura - os dois, aliás, normalmente são ideias bastante correlacionadas: você é inteligente de acordo com a bagagem cultural que possui - seus conhecimentos, suas experiências, a forma como você se expressa.
Lembrei agora que, na minha adolescência, eu (e boa parte do pessoal da minha idade), nos revoltamos contra toda expressão musical popular - como se os Beatles também não fizessem parte desse nicho. A maioria fugiu pras colinas do rock, como se fosse um gênero que dissesse muito sobre a sua inteligência e o seu bom gosto.
De alguma forma, sempre são buscadas formas de mostrar que tal produto cultural é mais relevante que outro e isso diz muito também sobre as pessoas que são cultas porque assistem Donnie Darko e leem Charles Bukowski. A diferença entre os funk não é cultura e os questionadores de Romero Britto é só a calça cor de caqui.
Minha fase de roqueira não durou muito depois dos quatorze mas eu ainda tava longe de ser uma pessoa flexível na minha assimilação cultural. Depois que eu ingressei na faculdade de Artes o complexo de underground me deu um hadouken. O que é bem paradoxal - tem muita gente da minha área que só quer saber do clássico, do institucionalizado. Aí eu fico meio puta.
Logo nas primeiras semanas do curso eu li uma apostila sobre cultura popular e erudita. Depois que você compreende a dinâmica das produções culturais não tem mais volta. Pensei que fosse terminar minha graduação com algum tcc sobre história da arte e nessa sexta-feira vou apresentar minha monografia sobre memes. Se não for pra profanar a Arte eu nem quero.
Na vida real, cultura é bem mais do que é definido como tal cotidianamente e a Arte não tem nada de sobrenatural. Acredito que a questão seja encarar as produções culturais (as músicas, os filmes, a televisão, entre outros) sob uma ótica social e sensível, e não sob o grau de dificuldade ou de refino artístico de tal produção - porque a Arte não tem essa aura transcendental que parece possuir. A arte é puramente humana.
Não me compreendam mal: não rejeito as produções dos grandes pintores, autores, bandas. Discutir sobre essas coisas é, quase sempre, muito enriquecedor. Mas o dia que eu ouvi pela primeira vez a palavra "pedante", foi quando fui indagada sobre meu gosto musical (que na época era bem enrijecido), e comecei a discorrer...
O grande erro é que, ao considerar algo bom, enrustidamente definimos o que é ruim. E o meu ruim era basicamente tudo o que era demasiado popular e distribuído pela indústria cultural em nível midiático. Nessa discussão sobre gostos refinados é quase impossível não ser arrogante e aí eu me toquei do lugar em que eu estava: numa mesa de um barzinho, tomando uma cerveja.
Que forçação de barra pra ocasião. Foda-se os Beatles, foda-se Caetano Veloso. Que merda era aquela que eu estava dizendo? Calei a boca. E recebi de volta de uma das pessoas reunidas na minha mesa: que pedante!
Era verdade.

Dos velhos tempos e as épocas de ouro

Dos meus quatorze a mais ou menos uns dezessete anos eu tinha uma grande preocupação além do vestibular: será que eu estou vivendo a minha vida? Reflexão pesada para uma adolescente média - considerando que boa parte das pessoas, eu acredito, vive e morre sem refletir de fato sobre sua própria existência.
Ainda não decidi se esse questionamento obsessivo é, no fim das contas, esclarecedor ou perturbador. Com efeito, quase certeza que eu não teria desenvolvido meu transtorno de ansiedade generalizada e hipocondria se não levasse tanto em conta a efemeridade da vida.
Na verdade, isso é uma puta faca de dois gumes. Pensar que a vida tem um fim supostamente deveria me fazer querer viver o tempo que tenho de uma forma melhor e toda aquela porcaria sobre amor e perdão. Mas não faz. Na menor das hipóteses faz minha crise de ansiedade atacar.
Aí eu tenho que parar de pensar na iminência da morte, tomar uma cervejinha e, as vezes, desabafar sobre meu pessimismo patológico com alguém. Quando eu me abro sobre as preocupações existenciais que me atormentam nas crises, posso identificar, muito claramente, três diferentes grupos de ouvintes:
Os igualmente ansiosos - que normalmente comentam te entender e te oferecem algum apoio (não falando palavras de conforto, mas tipo, te ajudando admitir que, sim, estamos na merda só por sermos humanos mas estamos na merda juntos, a humanidade inteira).
Os não-ansiosos niilistas: não entendem suas crises por acreditarem que, sim, a vida é uma droga mas não tem nada o que fazer sobre isso. Os mais sensíveis te mandam segurar a onda de uma forma gentil.
Os não-ansiosos otimistas: esses normalmente não fazem a menor ideia do porquê você pensa em coisas que te fazem mal e pegam mais uma cervejinha pra você. Esse é o grupo da minha mamãe.
Com 15 anos eu era muito afobada sobre viver e queria, tão desesperadamente, viver, que vivia achando que não tava vivendo. 
Mais ou menos com essa idade, no início das férias de julho, prometi pra mim mesma que aquele mês ia ser foderoso. Agora eu vou viver de verdade. Na primeira semana, marquei um cineminha com minha melhor amiga da época. Ela convidou mais outros amigos dela e assistimos um filme topíssimo ao melhor estilo found footage. Passou o cineminha e eu não tenho mais nenhuma lembrança dessas férias. Dormi tanto que só acordei no fim dela, por volta de umas 17h (péssimo hábito, eu sei).
Algumas horas depois estava eu no hospital por ter inalado veneno de rato.
Nesse belo dia minha mãe me intoxicou sem querer e deve ser por isso que hoje em dia ela me dá cervejinhas.
Não vivi férias e no final quase morri.
Na minha infância e até metade da minha adolescência eu era uma leitora voraz mas ficava full pistola porque parecia que eu - diferente dos personagens e dos autores que eu gostava de ler -, não tinha nenhuma história pra contar.
Um sentimento que considero análogo ao da problemática do filme Meia-Noite em Paris (2011), em que os protagonistas buscavam, de uma forma quase circular, viver vidas em épocas que não eram as suas - o personagem principal, Gil Pender (nosso contemporâneo), e sua queda pelo início dos anos 20 parisienses, sua enamorada do início dos anos vinte parisienses e a queda dela pela belle époque, e assim por diante...
Isso me faz lembrar inclusive, que, da mesma forma como o Gil Pender era obcecado pela efervescência cultural passada dos países alheios, com 15 anos eu era uma paga pau da geração flower power e vivia enchendo o saco sobre querer ter comparecido à cidadezinha de Betheu para o Festival de Woodstock em sessenta e nove.
Disse a pessoa que se der uma bitoca na Mary Jane a pressão baixa na mesma hora.
O pior é que, essa mesma época em que eu gastei boa parte dela me questionando se eu a estava vivendo, é justamente uma das épocas que mais penso com nostalgia. Acho inacreditável como a natureza dos tempos velhos é de se tornarem velhos tempos com o passar dos anos. E até um causo de intoxicação por inalação de veneno de rato fica d divertido contar.
Eu realmente não quero discorrer aqui sobre como enxergar "bons tempos" em nossa própria linha temporal ou em outras pode ser resultado de algum mecanismo psicológico que pode dizer muito sobre nossa satisfação - ou insatifacão - existencial.
O ponto é que, quem se responsabiliza pela definição das épocas de ouro, afinal, é só o tempo decorrido de lá até aqui.
No fim, é sempre bom ter algo nostálgico de lembrar.
E não tem nada de errado nisso.

O colombiano

Ah, vale adiantar que não gosto de escrever sobre amor e esse não é um texto sobre amor. É um texto sobre partidas.
Eu nunca havia experimentado me deparar com a situação de conhecer uma pessoa e saber o dia exato em que nossa a nossa relação ia acabar. Acredito que ninguém pense nisso quando conhece alguém: que dia vamos nos afastar? Quer dizer, pode até chegar a pensar. Mas não quando se gosta da pessoa. E, especialmente, quando se gosta romanticamente dela.
Mesmo se você já estiver bem calejado das relações amorosas humanas e drenado emocionalmente. Quando você conhece uma nova pessoa, os traumas passados podem até te fazer pensar no fim, mas você não o deseja realmente.
Não sei dizer com certeza, mas ele deve ter chegado por aqui lá por setembro. Nas sextas-feiras ele fazia a disciplina de Pesquisa em Arte na minha turma, e eu realmente não sei como só vim vê-lo final de novembro. Mentira, eu sei. Sou uma turista na faculdade.
Ele tem cabelos lisos pretos caídos sobre os ombros, os quais parece não querer saber amarrar direito. Uma trança numa mecha fina perto da nuca.
Tenho certeza que isso é algo que vou demorar a esquecer sobre ele.
Ele tem cara de aluno que paga matéria que reprovou por desinteresse. E foi exatamente o que pensei que ele estivesse fazendo na minha turma, naquela sexta-feira.
Durante a aula, vi um colega de turma mostrando umas músicas do Belchior para esse menino do cabelo que vou demorar a superar.
Depois da aula, os alunos que estavam com dificuldade na matéria e precisavam despertar a compaixão do professor para o resgate semestral, fizeram uma fila para falar com o docente. Antes da minha vez (obviamente sou figurinha carimbada das repescagens acadêmicas), o menino começou a falar com o professor, baixinho, e eu não consegui entender nada. Não porque ele falava baixo, mas porque falava em outra língua. Fiquei chocada.
Apenas um fragmento em seu discurso fui capaz de discernir: "minha tese é sobre (...) latino-americano" [sic].
Descobri o nome do menino vendo outras pessoas chamá-lo. Eu estava interessadíssima, mas sou uma moça recatada e do lar, discretíssima... Mal havia passado 15 minutos do término da aula, procurei-o no facebook. Descobri que ele era da Colômbia.
Eu, muito afobada e uma puxadora de assunto nata (nas redes sociais), enviei ao intercambista: "teu tcc é sobre o Belchior? Eu amo Belchior".
Ele respondeu. Só que o cu não tinha nada a ver com as calças.
Certeza que ele deve ter pensado que a mamacita aqui não era muito boa das ideias.
Queria entender que tipo de sinapses aconteceram no meu cérebro pra ligar as músicas do Belchior que o colombiano e outro colega estavam ouvindo, ao tema da tese do rapaz (que eu nem tinha ouvido muito direito).
Vocês me dirão: Ah, por causa da música Apenas um Rapaz Latino Americano, do Belchior. Sim. Mas ainda assim não faz sentido.
Mas calma, já estou até perdendo o fio da meada aqui.
Anyway, o papo fluiu bem, na medida que a divergência linguística permite. Nos conhecemos, saímos, nos telefonamos bêbados, trocamos músicas, fluidos e aconchegos. Ensinei palavrões e memes brasileiros pra ele e o presenteei no natal com uma carteira de marlboro e uma cartela de dorflex. Esperamos ônibus juntos e eu sinceramente não sei o que pode ser mais romântico e íntimo do que isso. Sexo é balela.
Tivemos um brevíssimo relacionamento, fugaz, como tantos outros hoje em dia. Não que antes isso não acontecesse - mas não sei dizer com certeza sobre as relações românticas dos séculos passados. Seria bem arrogante da minha parte, aliás. Sou dos anos 90. Mas algo me diz que nem era tão diferente assim. Enfim. Perdi o fio da meada de novo.
Pra efeitos de situação temporal, digo-lhes que estou em janeiro e o reveião (ou seja lá como isso se escreva) foi há três dias atrás. Fico extremamente emotiva nas viradas de ano. Não só emotiva - fico deprimida. A grande questão é que esses fins e começos sempre me deixaram reflexiva e epifânica, e aos meus vinte anos, começo a sentir a tontura que o tempo, com suas voltas e reviravoltas, causa em todo ser humano médio.
Por algum tempo, antes de tudo isso, a solidão foi uma decisão voluntária para mim. No fim do ano passado, continuei só, para variar. Do mesmo jeito que, em outras datas, me sentia tão confortável. Mas é muito fácil estar bem e completa sozinha quando não se está apaixonada.
Essa vibe depressiva que passar o fim de ano sem ninguém me proporcionou me fez remoer sobre todos os conceitos que estavam acomodados na minha cabeça sobre companhia e solidão construídos nos últimos meses.
Não vou mentir: toda vez que vejo o intercambista é como se alguém que estava guardado no meu inconsciente sobre o homem perfeito se materializasse na minha frente. Mas na vida as coisas acontecem em paralelo a sua mente: todas as expectativas são destruídas e o colombiano é errado de muitas formas diferentes.
Mas escrever é sobre elencar problemas e tentar unir as pontas soltas no fim, portanto: no primeiro encontro que eu e ele tivemos, num barzinho pé sujo que vou com frequência, uma das primeiras perguntas que fiz foi: "quando você vai embora?". Ele vai daqui com, exatamente, 27 dias.
Ele foi a primeira pessoa que conheci que eu sabia o dia exato da partida. E ainda assim, eu errei. Na realidade ele sumiu um mês antes do prazo. E nem precisou pegar um avião para isso.
Quando as pessoas têm que ir, elas vão de um jeito ou de outro.