Qual tua alcunha?

Eu estava quase pegando no sono quando meu celular vibrou debaixo do travesseiro. Por um momento pensei em ignorar. Não devemos ser escravos da tecnologia, é o que dizem. Mas aí lembrei da Paola. E se a notificação fosse da Paola? Desbloqueei o celular e abri o whatsapp. Senti o brilho da tela quase descolar minha retina, mas meus olhos logo se acostumaram à luz artificial. Não era Paola. Eu havia acabado de ser adicionada num grupo por um número desconhecido. Silenciei por um ano e voltei a dormir.
No outro dia abri logo o whatsapp pra ver se Paola tinha mandado alguma coisa. Nada. Aliás, não tinha mensagem de ninguém. Exceto as do grupo, cujas notificações já acusavam mais de oitenta mensagens no display. Li as mais recentes.

Buritinha: num te afudega q eu vou emprestar o carro dum pateta aqui
Pesadelo: boto fé, sera se ele não cagueta?
Buritinha: cagueta nada, o cara é parceiro
Batoré: sim mas me inteira ai do corre
              acabei de levantar, tô só murrinha
Pesadelo: tu tá moscando aí batoré
Buritinha: bicho te esperta
                  eu vou de motora, vcs entro de passageiro no ônibus
                  depois da ação cês desce que eu vou tá esperando vocês
                  num vão marcar toca
Batoré: drx
Pesadelo: cade o marculino do Turu aquela disgraça
Buritinha: eu coloquei ele aqui
                  kd esse porra

Era um grupo de malacos. Olhei os participantes e só haviam quatro. O Pesadelo, o Buritinha, o Batoré e eu. O número do Turu devia ser muito parecido com o meu e acabei sendo adicionada no lugar dele por engano, deduzi. Eu era o Turu.

Pesadelo: sim Turu tu vai castelar?

Fiquei paralisada e não respondi.

Batoré: burita
              esse número não é do Turu, olha o perfil da dispintada
Buritinha: ô carai
                  essa moleca vai peidar na missão
                  bora merendar ela na porrada

Entrei em pânico.

Eu: sim porra tu acha que pirikita não dá apoio meu patrão
Buritinha: olha só essa parada
                  qual tua alcunha, minha chegada?
Eu: Senhorita Andrezza pros senhores
Batoré: ulha a novinha lambissal...
Pesadelo: não duvido que essa mulekinha é menos marculina que o Turu rsrsrs
Buritinha: senhorita tu te liga na parada senão tu vai levar o destempero
Eu: Aqui o bagulho é louco e o processo é lento, nós num caga no pau não
Buritinha: dei valor, assume teu b.o e te equipa se tu é o bichão mermo
               
Assim eu acabei me infiltrando no assalto que iria acontecer no ônibus intermunicipal das 23:40 do dia seguinte. Marcamos de nos encontrar no inicio de uma rodovia escura e deserta, perfeita para a transgressão. Os três bandidos chegaram num carro popular preto enquanto eu os aguardava na parada combinada. Entrei no carro e, por incrível que pareça, nem com medo eu estava. Estava empolgada.
- Cadê o teu ferro? - foi a primeira coisa que me perguntaram.
Ferro? Pensei. Mas cada um tirou uma pistola de dentro da bermuda e eu logo entendi o que era o ferro. Não tenho como contar pra vocês que tipo de arma era de quem porque eu não entendo de armas e nunca nem tinha usado uma. Para não ficar por baixo puxei um terçado de 40 cm que trouxe de casa dentro da mochila.
- Boto fé... - aprovou Pesadelo.
- O bagulho hoje vai ser doido - disse batoré, animado, sobre a sutileza da arma que escolhi.
- Olha, Senhorita. - Buritinha aproximou o rosto de mim, ameaçadoramente -, agora a gente é NOIX. Mas se tu tiver metida com Power Ranger, não é mais NOIX.
- Power Ranger?
- Relaxa, Burita. Acho que a Senhorita é de rocha. - disse Pesadelo, tentando suavizar o clima.
- Metida cus bichão. - explicou-me Burita.
- Eu não sou fuleira. - Eu não era mesmo. Mudei de assunto:
- Não vamos usar máscaras?
- Aponta a arma na cara deles que ninguém te olha. - disse Batoré, rindo.
- Selado...

Eu, Pesadelo e Batoré pegamos o ônibus e nos sentamos nos primeiros assentos, aqueles preferenciais. Pra você ver como éramos desguiados mesmo. Mas, sabe, se eu fosse escrever um conto sobre uma história parecida com essa, eu jamais colocaria no enredo o fato que se sucedeu, porque ia parecer que eu estava contando mentira. Mas na vida real, o acaso não poupa coincidências.
Meus colegas levantaram e anunciaram o assalto. Quando me levantei, logo depois deles, eu a vi. E ela também me viu. Não tinha como eu assaltar um ônibus sem máscara com a Paola dentro.
Me fingi de inocente. Saí correndo lá da frente e sentei ao lado dela. Ela pareceu mais aliviada com a minha presença e eu apertei suas mãos com firmeza. Pesadelo encarou-me, estranhando meu comportamento. Batoré estava recolhendo os pertences dos passageiros quando a polícia, que esperava sorrateiramente entre as árvores que ladeavam a rodovia, invadiu o ônibus e rendeu os dois. Pegaram até o Buritinha, que estava de carro ao lado do ônibus.
Todos os passageiro saíram de dentro do coletivo para respirarem melhor após o susto. Eu continuei lá dentro com Paola deitada com a cabeça na minha coxa. Da janela de vidro eu vi os três sendo detidos. Eles não tiravam os olhos fumegantes de mim, como se dissessem "tu cagou no pau". Discretamente, fiz um sinal negativo com a cabeça, dizendo-lhes que "não, não fui eu", e acho que eles entenderam porque pararam de me olhar.
Um tempo depois, com minha gangue reunida novamente, os meninos me contaram que tinham mandado matar o cara que emprestou o carro pra gente, achando que era ele quem tinha avisado a polícia. No final das contas, o cara morreu de gaiato, pois acabamos descobrindo depois que o cagueta na verdade era o Turu, enciumado porque colocaram outro no lugar dele no grupo.
Tive que destemperar o Turu.
Esse bicho é marculino mesmo.

Uber Juntos

- Vocês souberam do meteoro que vai cair na Terra esse fim de semana? - disse o homem mais velho no carro.
- Esse fim de semana? Eu vi um que podia cair no fim de semana passado. O senhor não está confundindo? - o rapaz questionou.
- Por que eu estaria confundindo? Eu recebi a notícia do meu compadre! - o velho retrucou, irritado. Como se ter recebido a notícia do compadre fosse a maior prova de que o causo era verdade.
- Todo dia sai notícia de um novo meteoro que pode se chocar com o planeta... - disse a motorista do Uber, parando o carro em frente a um residencial para buscar uma moça.
- Deve ser tudo fake news. - Concluiu o rapaz, enquanto desbloqueava o celular para ver as horas.
A nova passageira acomoda-se no assento do carona e coloca o cinto de segurança. Logo se inteira da discussão no veículo.
- Eu só tô dizendo que já caiu meteoro antes e pode cair de novo. É só uma questão de tempo! - declarou o velho.
- É verdade, senhor. Eu recebi uma notícia de que esse fim de semana vai passar um meteoro bem pertinho da Terra. - disse a moça, virando-se para encarar o velho e o rapaz no banco traseiro do carro.
- Eu não disse? - Exclamou o homem mais velho. - Ela também já sabe. Não é verdade que a colisão já foi cientificamente comprovada, criança?
A moça pensou um pouco.
- Hm... acho que não. Esse meteoro é bem grande, já teriam avisado se fosse cair mesmo.
- Pois então! - disse o velho, indignado. - Vai fazer um estrago!
- Tomara que caia mesmo. - disse o menino rolando a tela do celular.
- Não! Quando é grande dá pra gente saber a rota dele muito antes de ele chegar perto da gente. Quando ele é pequeno que é perigoso. - explicou ela.
- Não foi o caso daquele que atingiu aquela cidade na Rússia? - perguntou a motorista, que ia parando novamente para o último passageiro entrar, antes de seguir para o destino em comum dos clientes.
Chelyabinsk. - confirmou o rapaz.
O novo passageiro junta-se aos dois homens no banco traseiro do carro.
- Credo!- exclama a motorista. - É tanta dessas porcarias que não dá nem pra acompanhar!
- E não é, menina! - assentiu o novo passageiro. - Já desisti desse novo governo.
Todos concordaram.

Trítono

Quando era adolescente, Roberto de Jesus foi até a encruzilhada mais próxima de sua casa às três da manhã de uma sexta-feira. O ambívio encontrava-se completamente estéril e silencioso. As luzes dos postes eram de um incandescente precário. A iluminação amarelada vacilava em realçar os pontos da rua menos sombrios, tornando o ambiente simbolicamente torvo. Ele sentou no centro do cruzamento. Como ia enterrar a caixa do feitiço? A rua era toda asfaltada. Resolveu aguardar o capeta com a caixinha nas mãos.
Abriu-a para conferir se nada estava faltando. Uma foto 3x4 dele. Confere. Pó de cemitério. Confere. Ossos de gato preto. Hesitou por um momento. Não sabia de nenhum lugar onde um gato preto havia sido enterrado e a ideia de matar um gatinho para conjurar o demônio causou-lhe arrepios. Usou os ossos da galinha do almoço. Deve servir, pensou.
Algumas dezenas de minutos se passaram. Já esperava há quase uma hora quando exclamou, irritado:
- Porra! Não devia ter usado ossos de galinha!
Ouviu, ao fundo, passos discretos. Virou-se lentamente e localizou, andando no canto mais escuro da rua, uma mulher. Ela deu meia volta quando notou que foi vista, mas foi pega de surpresa pela súplica desesperada do homem.
- Não! - Gritou. - Eu estava brincando sobre a galinha! Usei os ossinhos de um gato preto de verdade. Por favor, não vá embora!
A mulher virou-se para ele novamente, expressamente enojada com a confissão.
- Você matou um gatinho? - Perguntou ela, com desprezo.
- Matei sim, eu juro! - A voz de Roberto saiu trêmula. Era óbvio que estava mentindo.
Ele forçou a vista para identificar as feições dela, ligeiramente perturbadoras sob a luminosidade baixa da encruzilhada.
- Ainda podemos negociar? - Questionou ele.
- O quê? - Ela não tinha escutado bem a pergunta devido à distância entre os dois. Mas ele entendeu como se ela quisesse saber o que ele queria barganhar.
- Eu quero ser um grande guitarrista. - Respondeu. - Ofereço-lhe minha alma em troca, oh, minha senhora das trevas. - E fez uma genuflexão.
Ela fitou-o, desconfiada. Após alguns segundos, indagou:
- Cadê a sua guitarra?
- Em casa. - Ele olhou para os lados, meio sem jeito. - Fiquei com medo de me roubarem.
Ela prensou os lábios para não rir e semicerrou os olhos para conseguir enxergá-lo na penumbra. Considerou, por fim, que o rapaz não representava perigo algum. Andou na direção dele até alcançá-lo.
Ela usava meia arrastão e uma jaqueta de couro. Só agora ele podia ver que ela carregava algum instrumento no ombro, dentro de uma bag fina. Provavelmente era uma guitarra.
- Você não vai me beijar para selarmos o pacto? - Perguntou Roberto, inocentemente.
Ela respirou fundo para não perder a paciência.
- Mano... Eu moro ali no próximo quarteirão. Só parei naquele canto porque tava com medo de você ser algum estuprador.
- Ah. - Ele pareceu decepcionado.
- Vem comigo - ela disse. - Eu te ensino a tocar guitarra.
- Você sabe?
- Acabei de voltar do show, cara. Vamos logo, estou cansada. - Disse ela, já seguindo caminho.
Ele aprendeu a tocar com ela e, após muito treino, Roberto de Jesus se tornou um guitarrista internacional muito famoso. Mas quando morreu, aos 27 anos, foi direto para o inferno.
Satanás aceitava ossos de galinha também.

Mateus, fleumático e sem amor

- Foram dez anos, sabe? Quer dizer, eu realmente pensei que a gente... - Nina soluçava.
- Nina, aceitar uma separação é um processo. Não se culpe por ele ter ido embora primeiro.
- Não consigo suportar a dor. Parece que tem um buraco negro dentro do meu peito...
(Silêncio).
- Carol, o que você me diz sobre a Mental? - perguntou Nina, abruptamente. - Eu vi a propaganda deles enquanto esperava o consultório renderizar ainda agora -, explicou.
- Nós fechamos sociedade com eles no ano passado. É uma das empresas globais que mais investem em P&D no ramo da neurociência e da psiquiatria. Existem tanto programas recreativos como terapêuticos lá. Eu vou verificar quais tratamentos seu plano cobre. (Silêncio). Você pode acessar na sua caixa de entrada.
Nina sentiu o celular vibrar. Havia acabado de receber um e-mail de Carol, que adiantou-se:
- Esse procedimento "ressignificando o trauma" é bom, mas não é aconselhado para traumas recentes como esse seu. A recordação gráfica pode ser tão vívida que pode atingir um grau de estranheza. Alguns pacientes descreveram a experiência como "parecida com um pesadelo", além de relatarem piora nos sintomas de ansiedade e depressão. Não posso liberar pra você ainda.
- Tudo bem, eu não estava pensando nesse... - respondeu Nina, examinando os itens do e-mail. - E aquele "rememoração autônoma"? Não tá aqui na lista.
- É um serviço recreativo, por isso não coloquei aí. Você quer experimentar? Posso te transferir no fim da sessão. Você ainda tem 30 minutos.
- Pode me transferir agora?
- Tudo bem. Vou te redirecionar para algum especialista brasileiro disponível. - A psicóloga consultava uma espécie de tablet que cada médico da Virtual Medicine Brasil possuía para manejar os atendimentos por projeção dimensional.
- Vou precisar desconectar esse ambiente. Você pode aguardar aí mesmo.
- Obrigada, Carol.
Nina esperou na poltrona em que estava sentada, que ficava acoplada ao chão da saleta. Num instante, a sala estava totalmente vazia. Uma voz eletrônica e simpática ecoa no quarto.

"Paciente, aguarde na área neutra enquanto o consultório é renderizado.
Paciente, aguarde na área neutra enquanto o consultório é renderizado.
Paciente, aguarde na área neutra enquanto o consultório é renderizado.”

Nina viu diante de seus olhos a projeção de um novo ambiente despixelar-se. Um homem alto se materializou na sua frente.
- Nina? Eu sou o Dr. Pedro - apresentou-se o homem, cordialmente - esse é o Robson.
Robson era um computador com design retrô.
Nina estava agora num dos consultórios da Mental Institute. Enquanto reprogramava a máquina para acessar remotamente a estrutura neural de Nina, o médico explicava:
- Olha. O procedimento da rememoração autônoma não é exatamente uma reprodução do que você viveu. A memória humana não guarda todos os detalhes da experiência minunciosamente. Ele - olhou para Robson -, é o responsável por preencher alguns lapsos na sua rememoração. Ele também poderá interagir com você caso esses lapsos ocorram na lembrança do comportamento de outras pessoas que por acaso estejam presentes na sua recordação. Devo adverti-la de que lembranças antigas tendem a distorcer com mais facilidade.
Nina assentiu com a cabeça. Dr. Pedro continuou:
- Suas atitudes e comportamentos durante o processo devem ser parecidas com aquelas que você teve de verdade na ocasião. Dessa forma os acontecimentos serão mais verossimilhantes à lembrança e o Robson manterá o rumo lógico. Mas não se preocupe - acrescentou -, se a inteligência artificial se sentir confusa, ainda assim, vai se basear nas suas percepções implícitas para manter a experiência estável. Entendeu?
- Entendi. - Por dentro ela se sentia ligeiramente nervosa.
- Pode fechar os olhos e relaxar. - Declarou o médico.
(Silêncio).
Nina tomou um susto quando se deu conta de que acordara no banco do carona do carro de seu ex-marido. O vento esvoaçava-lhe o cabelo. Olhou pela janela do seu lado, que encontrava-se aberta. Estava numa rua cheia de folhas secas no chão e árvores alaranjadas ao redor.
- Que merda é essa? - bradou indignada. - Eu nunca andei nessa rua!
- O que? - Perguntou Mateus, seu ex-marido, calmamente, enquanto dirigia. Ela virou num sobressalto e encarou-o pela primeira vez.
- Mateus, eu sinto tanta saudade de tu, coelhinho! - não pôde conter a emoção.
Ele dirigia como se ela nada tivesse dito. Um raiva descontrolada subitamente inflamou o peito de Nina, transfigurando sua feição complacente e amorosa numa expressão rude e abrasiva.
- Por que tu me abandonou, seu ingrato? - questionou subitamente.
Mas Mateus continuava dirigindo tranquilo.
- Tu não colocou o cinto - proferiu Mateus, finalmente, como se a conversa tivesse começado agora.
Nina fitou-o em silêncio e recobrou o controle. Lembrou do que tinha respondido na ocasião e repetiu teatralmente:
- Se o motorista não coloca o cinto eu não coloco também - e deu um sorriso nervoso que falhou em parecer autêntico.
Ainda assim, Mateus (que era o Mateus da memória de Nina e que também era o Mateus personificado pela inteligência artificial) deu uma gargalhada gostosa, exatamente como na lembrança. Nina recordava com paixão essa gargalhada. E aqueles dentes lindos. E aquela boca... agora ele vai dizer que eu mato ele de rir,
lembrou ela.
- Tu é engraçada. - Sorriu simpaticamente para ela e então sua expressão descansou no mesmo feitio desinteressado que tanto lhe era natural.
Nina tinha escolhido especificamente essa memória porque se tratava da ardente comemoração do aniversário de um ano de casamento do casal. Começou a desabotoar a camisa de cetim nude sem que ele notasse. Já ia pedindo para Mateus encostar o carro quando ele repentinamente declara:
- Perdão pela paisagem. Mas é que você olhava tanto pra mim quando estava comigo que não prestava atenção em mais nada. Eu tive que encontrar no meu banco de imagens um cenário que mais tivesse valor sentimental para você. Escolhi o outono de When Harry met Sally. Sei que você adora esse filme.
Nina parou de desabotoar a camisa na mesma hora.
- Não, não. A gente não fala sobre esse filme nessa lembrança. - refletiu ela, coçando o queixo.
Ele começou a fitá-la enquanto ela pensava. Nina sentiu-se incomodada.
- Tu pode olhar pra frente? - reclamou, apontando para o para-brisas. - Vai acabar batendo em alguma coisa.
- Não tem nada nessa rua. Não vamos sofrer nenhum acidente. - (Silêncio). - A não ser que você lembre de algum agora. - acrescentou, inexpressivo.
Nina examinava-o, atordoada. Assustou-se com a semelhança desse Mateus holográfico com seu ex-marido Mateus. Era absolutamente o mesmo olhar perdido e o mesmo modo de falar genuinamente desinteressado. Mas era como se só agora ela enxergasse o quão esmagadora era sua indiferença. Respirou fundo e insistiu:
- Encosta o carro.
- Por que?
- Quero fazer uma coisa.
Mateus estacionou perto de umas árvores. Nina levantou de seu banco e sentou no colo dele. Começou a rebolar a bunda em seu membro por cima da calça jeans. Segurou-lhe o rosto com firmeza e lambeu-o do queixo quase até a raiz do cabelo. Mateus exasperou-se.
- Por que tu só pensa nisso o tempo todo? Eu pensei que você fosse me falar algo sério.
- Ele não disse isso! - gritou Nina, apontando o dedo na cara de Mateus.
- Ah, mas ele queria muito dizer. - disse Mateus, sarcasticamente.
(Silêncio).
- Ele nunca me amou, Robson? - a pergunta saiu trêmula de sua boca, quase como uma afirmação.
Mateus (ou a personificação dele) continuava fitando-a, imperturbável. Nina abriu a porta do motorista quase sem forças. Mal colou o primeiro pé na rua, acordou na poltrona do consultório. Emocionalmente abalada, assustou-se com a vibração de uma nova notificação no celular.
Nina recebeu o seguinte e-mail:

“Você me deixou excitado e eu me apaixonei.
Robson”.

Antônia e Clarêncio

Antônia acordou cedo na sexta-feira e tomou um banho caprichado. Colocou uma calcinha bonita e confortável e um robe igualmente bonito e confortável. Prendeu os cabelos de uma forma cuidadosamente desajeitada. Não usava nenhuma maquiagem, mas a sobrancelha e o buço tinham sido devidamente corrigidos no dia anterior. Foi fazer o almoço.
Da pia da cozinha era possível ver o portão através da porta de vidro. Ela picava as cebolas e alhos quase instintivamente, de modo que seu olhar vez ou outra tirava proveito da transparência da porta. Observava o que era possível ver da rua por cima do portão. Preparava dois hambúrgueres.
Enquanto concentrava-se modelando os bolinhos de carne, pôde ouvir palmas. Olhou imediatamente para o portão e viu a ponta da cabeça de um homem. Seu coração apressou-se. Antônia limpou as mãos rapidamente no guardanapo do armário e catou as chaves em cima do balcão. Ao fitar o portão novamente, já não via mais cabeça nenhuma. Foi até lá mesmo assim e abriu-o. Não havia ninguém.
Ficou tão perturbada com o acontecido que perdeu a fome. Comeu somente um hambúrguer.
***
Antônia acordou cedo na outra sexta-feira. Tomou banho, vestiu o robe. Passou seis minutos escovando os dentes. Foi fazer o almoço. Picava com maestria o cheiro verde e a salsinha. Ia cozinhar duas panquecas de bacon para o almoço. Enquanto fritava a massa das panquecas, ouviu palmas calorosas. Fitou o portão imediatamente e viu a ponta da cabeça de um homem afastar-se do portão num milissegundo, como uma criança que aperta a campainha de uma casa qualquer e sai correndo logo depois.
Antônia pegou as chaves em cima do balcão num piscar de olhos. Ouvia os passos rápidos do homem fugindo. Abriu o portão agilmente e examinou a rua. Estava deserta.
Foi para a cozinha e almoçou decepcionada: uma das panquecas havia queimado.
***
Teve uma sexta-feira em que Antônia teve insônia e levantou meio atordoada pela manhã. Abria calmamente um pacote de biscoitos enquanto o bule chiava no fogão. De repente, ouviu bem baixinho uma voz masculina familiar gritando: "abre aqui, abre aqui!". A essa hora do campeonato, Antônia já carregava as chaves no bolso do robe.
Já estava abrindo a porta de vidro quando se deu conta de que quanto mais ela chegava perto do portão mais incompreensível ficava a voz. Na cozinha, embora num volume baixo, a voz era muito mais audível. Caminhou pela cozinha. Tentava identificar de onde vinha o pedido. Na geladeira, não... no freezer, não... no bebedouro, não... Tava frio. No armário já começava a escutá-la melhor.... no microondas, começava a ficar quente. No fogão, fervia. Só então notou que a tal voz vinha do bule. Aproximou o ouvido do vapor e já não era mais a voz. Era só o chiado do bule.
***
Na última sexta-feira, Antônia acordou e pôs seu robe de sempre. Tomou uma chuveirada fria e passou hidratante no corpo. Dos dois bancos que haviam em frente ao balcão da cozinha, puxou o que mais usava e sentou-se, de forma que seu corpo ficava de costas para o portão. Antes de acomodar-se, não posso deixar de mencionar, ela destrancou-o e deixou-o completamente escancarado. Esperou com
um bule de chá de gengibre.
Ouviu palmas baixas e compassadas. Controlou a curiosidade e continuou esperando de costas para o portão aberto. As palmas foram ficando mais rápidas e altas, até um ponto em que Antônia não podia mais aguentar não olhar. Virou-se subitamente e sua xícara escorregou de sua mão, espatifando-se no chão. Mas não havia ninguém. Limpou os cacos de porcelana do chão e foi pegar a outra xícara da cozinha. Sentia um vazio avassalador no peito.
***
Do outro lado da cidade o ex-namorado de Antônia, que era professor, gozava sua folga de sexta. Num momento aleatório do dia ele pensou que, há um tempo atrás, numa hora dessas, ele renunciaria àquele sagrado dia de jogatina para atravessar a cidade e visitar sua ex-namorada Antônia. Suspirou aliviado.
Fruiu de sua sexta-feira tranquilamente, bem como de todas as outras sextas-feiras até o fim de sua vida, sabendo que sua alma não era mais sugada por Antônia, aquela doida fuleira, pensou ele.