Ela, a ressaca de dois dias.

 Vou tentar evitar falar sobre estar me sentindo uma filha pródiga voltando ao lar.

Ela, né. A ressaca de dois dias.

Há aquelas pessoas que contam que nunca sentiram uma ressaca na vida. E eu sou sinceramente incapaz de compreender isso. Isso porque, com mais frequência, há também aquelas que dizem que só passaram a sentir ressaca depois de certa idade. Mas isso eu também sou incapaz de dizer. Tenho ressacas homéricas desde que comecei a beber - beber de verdade, no caso -, aos 16 anos.

Digo "de verdade" porque também era incapaz de passar uma única festa de família sem dissimular uma tacinha de vinho ou um gole de piña colada na pré-adolescência. 13 anos era um copo de coca-cola com dois dedos de vodka em pleno jantar de natal. Ninguém sabia. Inclusive, aquela piña colada cara que acabara repentinamente, ninguém sabe até hoje. 

Mas a situação é essa: após uma bela noite em que me meti a beber muita cerveja, muita mesma, com minha chefe (sim), acabei desbloqueando ela, a ressaca de dois dias.

Depois desse episódio, eu nunca mais tive paz. 

Meu pai dizia, "a verdadeira ressaca faz até a orelha tremer". E isso é verdade. O álcool bagunça tanto o sistema nervoso que em casos difíceis isso acontece mesmo. Comigo, era daí pra pior. Mas era coisa passageira. Um dia, no caso.

Não importasse os sintomas (embora eles fossem tão fortes que importavam muito sim, naquele momento), após 24h eu tinha a certeza que não, eu não estava morrendo. Era só uma ressaca.

E se você tem questões psiquiátricas, piorou. Bacolatina adverte: se você tem síndorme do pânico ou é 1- hipocondríaco, 2 - ansioso e 3 - fudido, saiba a hora de parar. E é claro que isso eu não sei, porque também sou 4 - alcoólatra.

Venho de uma linhagem muito especial, uma casta de pés-de-cana, papudinhos, bebuns, pinguços, beberrões e zés-pinga. Isso tudo dentro da cultura e do ambiente ao qual está exposto todo brasileiro médio.

No entanto devo ter algum tipo de arranjo genético que me faz beber como um opala há cinco mil anos e ainda assim ter uma ressaca do tipo que faz parecer que cada impulso elétrico do sistema nervoso parece ser enviado com defeito. De fato, me sinto o próprio Sísifo tendo que empurrar uma caninha gigante no morro. Um castigo que só pode ser explicado se vidas passadas for real ou eu for uma odiada dos deuses.

Já passei 13 anos sem beber. Minha infânca e pré-adolescência. Depois disso, aos 18, passei 1 ano sem bicar, assim que comecei meu tratamento psiquiátrico. Não fez diferença pra saúde mental na época - ela era péssima mesmo sem o álcool pra atrapalhar; Se você me acompanha, já sabe que sou uma mulher totalmente desequilibrada, tudo me afeta. Se leu minhas crônicas antigas sabe exatamente do que estou falando.

De certa forma sinto que melhorei vertiginosamente e sinto que daqui com 5 anos escreverei esse parágrafo novamente achando que eu era louca agora e estou melhor no futuro. Iludidíssima, sempre vivendo no limbo da existência de forma geral.

Ao menos eu espero escrever, espero estar viva pra isso. Minha ansiedade generalizada tem foco no medo de morrer. Para mim, não existe ninguém no mundo que tenha mais medo de morrer do que eu. É o álcool me toca como um viver elevado a x potência e a ressaca é uma morte horrível. Um dia pra viver, um dia pra morrer. Um dia de ser caçador e um dia de ser caça.

A chavinha virou quando percebi que estava começando a ficar desequilibrado: um dia de caçador, dois de caça. Aí deu problema. Essa cachaçada tá tentando me matar! Eu aqui dedicando 60% do meu salário pra ela e ela me apunhalando no crânio no outro dia.

Mas existem diferenças: a ressaca no primeiro dia é quase mortal. Se você beber o suficiente ou for fraco o suficiente, ou os dois, que é a minha situação, você pode sentir a morte chegando, assoprando na orelha. Deve ser por isso que ela treme. Mas no segundo dia, ela já está em fase latente. No exame de sangue ou no bafômetro provavelmente vai apontar 0,00 mg/l de álcool mas nesse momento a ressaca já passou a ser produzida deliberadamente pelas suas próprias células. 

Aquele mal estar que não te impede de nada mas também não te permite. Aquela sensação de que algo tá errado mas você não sabe dizer o que, exatamente. Eu sei que você está aí, maldita. Aí dentro, bem dentro, bem no fundo, no fundo do fundo.

No terceiro dia, passou. Me sinto plenamente feliz e finalmente capaz de responder pelas minhas obrigações. Mas algo mudou. Eu não quero mais beber. Não é que eu não sinta vontade. Eu não quero. O trauma da ressaca de dois dias é perigosamente mais eficiente que o da ressaca de um dia e precisamos falar sobre isso. Porque atrás da orelha eu sinto a morte cochichando nebulosa e dissimuladamente:

- Ressaca de três dias...

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