Cuidado com a cobra

- Ninguém solta a mão de ninguém! - Avisou o da frente da fila.
- Vai mais devagar aí, porra! - Disse o último, tropeçando nas folhas e nos galhos do solo.
- Como tu sabe que estamos no caminho certo? - Reclamou um dos estudantes, já cheio de carrapichos presos pela roupa.
- Não é possível, isso é só uma lenda besta.
O breu já tinha tomado conta da noite e não havia um único ponto de referência no matagal. Todas as árvores e plantas pareciam exatamente iguais, bem como o mato alto que homogeneizava a paisagem por onde quer que olhassem.
- Eu já vim uma vez aqui. - Explicou o da frente.
- Como tu lembra do caminho? 
- Ei, mana, relaxa. E passa essa bola, mão de cola. - O primeiro pega o beck da segunda.
Outra moça, que carregava o vinhoso de quatro litros com a mão já vermelha, começa a ficar agoniada.
- Será que nenhuma cobra vai picar a gente? 
Ninguém respondeu.
- Pega, caralho. Achamos. - Declara o primeiro.
Uma grande clareira apresentou-se diante daqueles doze olhos. Era uma espécie de campinho de futebol, iluminado unicamente pela luz amarelada de um poste antigo. Duas traves de ferro sem as redes (talvez tivessem existido um dia), uma em cada extremidade do campo de areia. Um sofá cor de vinho, caindo aos pedaços, que repousava mais ou menos perto da trave que estava mais próxima do grupo, tão familiar àquele ambiente que parecia ser feito igualmente de areia.
A menina que carregava o vinhão jogou-se no sofá agarrada com o garrafão no colo, como se fosse um recém-nascido. Deu com as costelas nos pedaços de pau do sofá, cuja quantidade de espuma deveria corresponder somente a algumas moléculas. 
- Como tu tem coragem de sentar nisso aí? - Perguntou um dos colegas.
- Não tem mais nenhum lugar pra sentar.
- E se tiver algum rato aí dentro? 
Era um sofá de dois lugares mas só um dos lados estava "inteiro", no sentido mais flexível possível da palavra. No outro havia um buraco enorme que expunha o interior do sofá. Olhando de longe, parecia que o buraco era tão escuro quanto o breu daquela noite. A moça deu de ombros. O colega insistiu.
- E se tiver uma cobra?
Os olhos dela esbugalharam.
- E se tiver uma cobra? - Ela repetiu a pergunta, finalmente se dando conta do perigo.
- Levanta com cuidado. - Ele disse. 
Ela levantou cautelosamente com o bebê alcoólico nos braços. Deu dois chutões no sofá para afugentar qualquer ser maligno que pudesse estar escondido. Nada. Deu mais dois chutões que quase fizeram o sofá esquelético capotar no ar.
- Não tem nada. - Disseram os dois ao mesmo tempo.
- Me dá esse vinho aqui. - Tomou o vinho da colega e virou para servir-se de um copo. Viu que dois colegas, o que estava na frente da fila, o "guia", e a que estava atrás dele, se pegando fortemente debaixo de uma árvore, que farfalhava barulhenta com a movimentação.
- Ei! Podem parar, ninguém tem camisinha aqui! - Gritou com o copo de vinho na mão, e foi lá separar os dois amigos. A menina serviu-se de um copo de vinho e sentou-se novamente no sofá, levemente inclinada e com as pernas cruzadas. Quem visse de longe podia chegar a cogitar que o sofá era minimamente confortável.
Outros dois colegas, mais contemplativos, que voltavam de uma caminhada ao redor do campinho, se aproximaram dela e olharam o sofá com visível asco.
- Como tu senta nisso aí?
A moça do vinho cerrou os olhos e não respondeu nada. Observou o colega voltar puxando pelo braço os dois amigos.
- Tá muito quente aqui. - Todos concordaram afirmando com a cabeça e fazendo caretas.
- Por que não tiramos a roupa? - Alguém disse. Ninguém sabe quem disse.
Àquela porcentagem de álcool no sangue essa pareceu uma ideia muito sensata. A moça do sofá se levantou e tirou o vestido, ficando só de sutiã e calcinha. E sentou no sofá de novo. O desespero nessa hora foi real.
- Meu deus, como tu consegue sentar nesse sofá assim? - Perguntou um dos meninos que estavam caminhando.
- Eu já olhei, não tem nenhuma cobra. - Disse ela.
- Cobra?! - Exclamou ele, exasperado. - É esse teu problema?
- Inacreditável. - Suspirou o outro.
- Tu não sabe nem o que fizeram em cima desse sofá. - Reiterou o menino da caminhada.
- Esse sofá é muito suspeito - Concordou uma menina.
- Talvez seja seguro por isso. Ninguém senta aí porque todo mundo tem nojo. - Refletiu a menina com algumas folhas verdes presa nos cachos de cabelo.
- Se todo mundo pensar desse jeito significa que todo mundo que vem aqui senta nele.
- Eu não quero sentar na areia. - Decidiu a moça do sofá.
- Esse sofá tá só areia. Tu levantou e tua costa tava só terra. Antes sentar na terra logo, maninha. - Disse o menino que se fazia de guia.
A menina do sofá continuou irredutível. 
- Alguém coloca uma música aí? - Alguém pediu. A música de algum celular começou a tocar. Ninguém sabe qual.
Com as baganas acumulando num montinho em cima da areia e o garrafão de plástico do vinhoso ficando cada vez mais leve, os dois que já estavam se pegando foram os primeiros a sentar no braço do sofá, do lado da moça do sofá.
O próximo a sentar foi o colega que tinha trazido os dois pra perto do grupo. Sentou no outro braço do sofá, e vez ou outra se pegava olhando fixamente para o buraco ao seu lado, o pano esgarçado que contornava o círculo vazio e, no fundo, as mini dunas de areia que se acumularam no interior daquele sofá, um saara aleatório que se formara em pleno bioma amazônico. O sofá, um terrário.
Os outros dois, os únicos ainda em pé, cederam e acabaram se espremendo na pontinha sofá do lado que tinha o buraco, tão prudentes quanto a ebriedade permitia. A impressão era que se caíssem no buraco nunca mais sairiam.
Num dado momento todos já estavam só de cueca e calcinha, abertos ao peculiar conforto e intimidade que o sofá proporcionava. Doze pernas aos poucos começaram a se esfregar em cima do sofá, em troca de fluídos intensa, onde pele e areia fundiam-se numa esfoliação afrodisíaca.
No sofá, apenas uma regra era seguida:
- Nem pensa em colocar o pau aí! Ninguém tem camisinha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário