A revolta da gotinha

Eu estava quieta na fila, segurando a mão do meu pai. Minha feição beirava o desinteresse. No entanto, era quase impossível manter-me alheia à neblina conspiratória que pairava mais ou menos um metro acima do solo. Uns diziam que a história das gotinhas era só uma estratégia para evitar um motim causado pelo medo de injeções: quando sentássemos no colo dos nossos pais, puxariam os nossos braços e enfiariam longas, grossas e dolorosas agulhas. Outros, mais ansiosos, diziam que as tais gotinhas eram altamente letais e aquela era uma fila direto para a morte.
Ouvi os rumores como quem escuta um noticiário de bem longe. Algumas das crianças tentavam comunicar-me, sob a submissão das mãozinhas dadas com as de seus pais, que estavam assassinando pirralhos naquela manhã ensolarada e que nós seríamos os próximos. Perguntei ao meu pai o que era tudo aquilo; ele me disse, cordial, que aqueles moleques eram muito medrosos, diferente de mim, ele frisou. Suas palavras deram-me colhões e até um certo orgulho. Mantive-me calma enquanto observava a agoniação e o pânico das outras crianças. Selvagens.
A única coisa que separava a fila de crianças e seus pais do interior da tenda de vacinação era uma espécie de pano branco, que encortinava todas as laterais da tenda, deixando uma pequena fenda na frente para permitir a entrada e saída dos pacientes e dos agentes de saúde presentes na campanha. O sol estava muito quente e o pano branco tornava-se quase transparente em contato com a iluminação solar. Certamente a cor ajudava a tenda a não absorver tanto calor do sol, mas o pano não conseguia cobrir muita coisa, sendo possível verificar, através dele, a movimentação dos borrões antropomórficos que caminhavam lá dentro de um lado para o outro.
A paranoia infantil generalizada tornava-se cada vez mais difícil de ignorar a medida em que eu me aproximava da abertura da tenda. Comecei a escutar choros desesperados e gritos molecais ecoando de lá. Atrevi-me a dar uma olhadela pela abertura. A cena de que fui testemunha me aterrorizou profundamente: um dos meus estava sendo claramente torturado pela mulher da vacina, que segurava com brutalidade sua pequena e frágil mandíbula. E pior: o próprio pai da criança segurava seus dois braços com a agressividade da aspereza de seus punhos adultos e masculinos. Não, pior! Como o pano que cobria a tenda, um ser igualmente branco observava aquele holocausto com um sorriso psicótico, que ia de um lado do rosto ao outro - observe: eu não disse de "orelha a orelha" pois esta aparição não as tinha. Sua cabeça pontuda dava-me a impressão de que ele ateava fogo em crucifixos para passar o tempo.
Determinada, supus estar tudo sob controle. Tinha chegado a minha vez. Entrei na tenda em câmera lenta. Papai sentou na cadeira e me pôs em seu colo. Percebi que os olhos daquela assombração alva fitavam-me, e o pavor incubado dentro do meu minúsculo ser extinguiu qualquer expectativa paterna de eu ser a única criança a não ter uma crise de pânico no recinto.
Nesse momento, pareceu-me legítimo lançar mão daquele instinto de sobrevivência que, naquela manhã, unia todo os moleques num só, com suas resistências agudas e esperneios finos. Vi-me, então, fugindo em desespero, correndo pela minha pequena vida, deixando para trás meu pai, a tenda, a mulher da vacina e, especialmente, aquela criatura herética, que permaneceu lá, parada - enquanto todos os outros adultos corriam atrás de mim -, regozijando-se de todo sofrimento infantil que emanava naquele local, com seus olhos vidrados e a bocarra sorridentendemente assustadora, numa espécie de júbilo sanitário e sarcástico.

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