Trote

Dizem que é sempre fácil identificar quem é calouro: basta observar no campus quem ainda possui brilho nos olhos. No entanto, na minha universidade existia uma senhora muito mais consumida pela dureza da vida do que qualquer acadêmico veterano que divide as atividades diárias entre estágio e tcc.
Antes de ouvir boatos sobre a senhorinha - extremamente humilde, manca e noventa e cinco por cento cega -, avistei-a pela primeira vez enquanto me dirigia ao restaurante universitário.
Ela vinha em direção contrária a que eu ia, acompanhada de uma estudante de enfermagem ou medicina (tava de jaleco branco), que guiava a idosa segurando-a por um dos braços. A expressão de sua face morena e enrugada dava a entender que ela estava prestes a desabar em prantos a qualquer momento; os olhos fechadinhos e a boca aberta, numa súplica silenciosa e desdentada. A velhinha parecia arrastar-se ao lado da moça - pude calcular que levava no mínimo cinco segundos para dar cada passo.
Logo pensei que, se a acadêmica tivesse ajudando-a a sair do campus, ela perderia no mínimo quatro aulas de anatomia humana ou farmacologia. Ainda bem que eu não tinha encontrado a anciã coxa antes da moça, senão provavelmente eu teria que perder o almoço para ajudá-la. Que coisa horrível de se pensar. Mas é verdade.
Nessa mesma época houve uma comoção em massa na universidade. Foi organizado até uma campanha de doação de dinheiro e alimentos à idosa que, segundo os boatos que ouvi, foi pedir esmolas de sala em sala no bloco do curso de direito. A pobrezinha chegou lá e, em meio a seu sofismo soluçante, urinou-se toda na frente de uma das turmas, derramando todo o seu sofrimento pelas pernas, inundando o chão, o vade mecum, e a consciência dos acadêmicos de vergonha e compaixão. Disseram que só nessa turma ela arrecadou quase duzentos paus.
Ainda bem que ela soube escolher o curso certo para pedir colaboração. Se tivesse ido nas licenciaturas...
Um dia, indo para a faculdade, às seis e quarenta e cinco da manhã, o ônibus em que eu estava passou bem na frente de um bar, daqueles bem decadentes. Observei o boteco despretensiosamente através da janela. A música alta (um brega muito animado) que tocava lá, tornou-se grave subitamente, tão rápido que meu ônibus estava, permitindo a mim apenas um vislumbre da cena do bar, quer dizer, não exatamente no bar, mas daquela senhorazinha safada cujo rebolado testemunhei, completamente aterrada.
Bom, pelo menos a saúde da velhinha parecia intacta: andava e enxergava muito bem - rodopiava pelo bar enquanto equilibrava um copo de cerveja numa das mãos.
Admito que fiquei meio balançada a levar este segredo para o túmulo. Me senti, de certo modo, culpada por ter visto a idosa na sua malemolência; por ter olhado para fora do ônibus no momento do seu remelexo e até mesmo de ter ido estudar tão cedo naquela manhã, presenciando, assim, o seu gingado fraudulento. No entanto, resolvi escrever para a página do facebook da minha universidade para alertar as pessoas sobre a falcatrua da anciã. Foi nesse momento que fiquei ainda mais aturdida: o moderador da página me respondeu que, só nesse dia, tinha recebido mais de vinte mensagens sobre o assunto, incluindo fotos e até vídeos da senhora dançarina, em anexo.
Pouco tempo depois, a notícia foi publicada na página, com o dado adicional de um acadêmico que morava próximo a esse bar (que aliás, fica basicamente na mesma rodovia do nosso campus - esse foi o erro da pilantra), dizendo que já tinha visto a velhinha pagar pelos serviços sexuais de um rapaz que vendia bombom e cigarros perto do boteco.
Depois desse desmascaramento público, que ocorreu mais ou menos na metade do ano passado, a idosa sumiu do campus porque ninguém ajudava ela mais. No entanto, iniciozinho desse ano, quando entro pelo portão da universidade, dou de cara com ela de novo. Eu entrando e ela saindo, acompanhada por dois calouros. Ela não tinha desistido de sua personagem: mantinha os olhinhos fechados, imitando cegueira (e até uma certa fotofobia), e a boca aberta, desdentada e dramática. Cada um dos mocinhos segurava uma de suas frágeis mãozinhas morenas e enrugadas, escoltando pacientemente o calvário dos passos da atriz, um do lado e o outro doutro.
Bem, aqui na minha universidade é ainda mais fácil de identificar quem é calouro: basta observar quem cai na farsa da velhinha humilde, manca e noventa e cinco por cento cega.

Nenhum comentário:

Postar um comentário