O velho da encruzilhada

Já era quase madrugada. Uma tempestade muito forte tinha rompido algumas linhas de transmissão de energia elétrica há algumas horas, deixando o bairro completamente no escuro. Por sorte, a lua estava cheia, e iluminava o suficiente para que Rafa e Tito enxergassem as bordas dos copos de alumínio e a boca da garrafa de vodka que tinham aberto pouco antes do apagão.
Era uma das sexta-feiras que os dois costumavam sair para beber. Mas nesse dia, a chuva só permitiu que eles se deslocassem, no máximo, até a frente da própria casa. Empurraram o sofá de dois lugares da sala e uma mesinha para o pátio, e começaram a tomar uma vodka que estava esquecida no fundo da geladeira.
Eles odiavam vodka. Quem (não-russo) gosta? Tinham comprado a garrafa há meses atrás para a festa de aniversário do Tito. A ideia era fazer batida de morango. Mas tinha muita cerveja na ocasião e nenhum dos convidados lembrou de querer a vodka.
Na sexta tediosa, eles lembraram. Se acomodaram no pátio e encheram os copos. Nenhuma viva alma na rua. Tudo escuro. Deram o primeiro gole. Que bebida horrível.
- Essa vodka tá me dando um sono... Olha essa chuvinha maravilhosa. Boa de dormir. - Disse Rafa.
Lá fora trovoava.
- Pior. - Concordou Tito. - Mas o ar-condicionado só vai funcionar depois que voltar a energia.
Rafa assentiu tristemente, em silêncio. Dormir naquele calor seria impossível. 
Sem energia elétrica e totalmente entediados, começaram a contar histórias de terror. Falaram sobre a fazenda Myrtles, em Louisiana, que hoje é uma pousada, com visita guiada pelo prédio sobre os principais fantasmas do local. Falaram também da mansão Winchester, uma casa assombrada que era submetida a constantes reformas a fim de confundir os fantasmas. Lembraram que O Exorcismo de Emily Rose foi baseado em fatos reais. Comentaram sobre a suposta maldição do Edifício Joelma e os assassinatos que aconteceram no local antes do famoso incêndio. Falaram sobre a engenhosidade e crueldade da preparação dos atiradores do massacre de Columbine. E as encruzilhadas! Moravam no canto de uma. Esse ponto sujeito à despachos, bruxarias e, quiçá, pacto com o tinhoso. E agora já eram quase três da manhã, a hora do capeta. Credo em cruz.
Os dois nem tinham medo de histórias de terror. Só que, sozinhos no pátio de uma casa, de frente pra uma rua totalmente deserta e uma vizinhança de residências silenciosas, todo mundo fica meio cagão.
Enquanto Tito servia seu copo e o de Rafa e tentava lembrar de mais casos macabros, Rafa observava a paisagem. Sob a fosca luz da lua que atravessava fracamente as nuvens do céu noturno, do outro lado da rua, pensou enxergar alguém. Semicerrou os olhos, já meio zonzo, esforçando-se pra discernir algo por entre as gotas grossas da chuva. Forçou bem a vista. Não era nada.
- Que foi, Rafa? - Perguntou Tito, oferecendo o copo de bebida. Rafa pegou o copo, deu um gole. Já descia como água.
- Nada. Pensei ter visto algo. - Deu uma gargalhada - Eu tô muito chapado. - Disse olhando para Tito, sorrindo. Rafa voltou os olhos para a rua novamente.
- PUTA MÃE DE DEUS!
- Que foi, doido? - Tito tomou um susto com o sobressalto de Rafa.
- Tem um velho do outro lado da rua! A porra de um velho assustador! - Apontou com mão que segurava o copo para o outro lado da rua. Chacoalhava o braço e apontava o dedo, derramando um pouco de vodka fora do copo. - De terno e segurando a porra de uma bengala do capeta! - Descreveu Rafa, quase gaguejando.
- Que porra é essa, Rafa? Do que tu tá falando?
Rafa pôs as duas mãos no rosto do Tito e virou-o em direção aonde o velho estava. Gritou de novo, à beira de um colapso nervoso.
- Olha pra lá, caralho!
Tito olhou. Forçou bem a vista. Não viu nada. Ficou preocupado com o namorado.
- Rafa, vamo entrar? A gente já bebeu demais. A gente nem é acostumado a beber vodka. Vamo dormir, tá tarde.
Tito tomou o copo da mão do Rafa e levantou do sofá. Disse:
- Vem, me ajuda a carregar de volta pra sala.
Rafa continou sentado. Ficou mais indignado com Tito do que com a suposta aparição demoníaca em forma de velho.
- Tu acha que eu tô bêbado, seu filho da puta?
Para os bêbados, não há acusação pior do que acharem que eles estão bêbados. Tito fez uma cara feia. Alterado, Rafa apontou de novo para o velho:
- Como tu não tá vendo aquele velho do mal ali? Olha a bengala, cara! O terno, cara, olha o terno!
Mas Tito não via nada. Rafa, impaciente, puxou Tito pelo braço, falando:
- Vamos embora daqui. Um velho de terno e bengala, às três horas da manhã, próximo a uma encruzilhada? Coisa boa não é, Tito! Deixa essa porra desse sofá aí e vamos entrar. Deus me livre e guarde.
Do outro lado da rua, um advogado recém aposentado, praguejava, segurando um guarda-chuva fechado. Já havia ligado para a companhia elétrica mais de 13 vezes naquela madrugada. Toda hora ele saía e entrava em casa, numa agoniação infernal para verificar se os filhos da puta dos eletricistas já tinham vindo resolver o problema da energia.
Ninguém dorme em paz sem ar-condicionado.

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