Antônia e Clarêncio

Antônia acordou cedo na sexta-feira e tomou um banho caprichado. Colocou uma calcinha bonita e confortável e um robe igualmente bonito e confortável. Prendeu os cabelos de uma forma cuidadosamente desajeitada. Não usava nenhuma maquiagem, mas a sobrancelha e o buço tinham sido devidamente corrigidos no dia anterior. Foi fazer o almoço.
Da pia da cozinha era possível ver o portão através da porta de vidro. Ela picava as cebolas e alhos quase instintivamente, de modo que seu olhar vez ou outra tirava proveito da transparência da porta. Observava o que era possível ver da rua por cima do portão. Preparava dois hambúrgueres.
Enquanto concentrava-se modelando os bolinhos de carne, pôde ouvir palmas. Olhou imediatamente para o portão e viu a ponta da cabeça de um homem. Seu coração apressou-se. Antônia limpou as mãos rapidamente no guardanapo do armário e catou as chaves em cima do balcão. Ao fitar o portão novamente, já não via mais cabeça nenhuma. Foi até lá mesmo assim e abriu-o. Não havia ninguém.
Ficou tão perturbada com o acontecido que perdeu a fome. Comeu somente um hambúrguer.
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Antônia acordou cedo na outra sexta-feira. Tomou banho, vestiu o robe. Passou seis minutos escovando os dentes. Foi fazer o almoço. Picava com maestria o cheiro verde e a salsinha. Ia cozinhar duas panquecas de bacon para o almoço. Enquanto fritava a massa das panquecas, ouviu palmas calorosas. Fitou o portão imediatamente e viu a ponta da cabeça de um homem afastar-se do portão num milissegundo, como uma criança que aperta a campainha de uma casa qualquer e sai correndo logo depois.
Antônia pegou as chaves em cima do balcão num piscar de olhos. Ouvia os passos rápidos do homem fugindo. Abriu o portão agilmente e examinou a rua. Estava deserta.
Foi para a cozinha e almoçou decepcionada: uma das panquecas havia queimado.
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Teve uma sexta-feira em que Antônia teve insônia e levantou meio atordoada pela manhã. Abria calmamente um pacote de biscoitos enquanto o bule chiava no fogão. De repente, ouviu bem baixinho uma voz masculina familiar gritando: "abre aqui, abre aqui!". A essa hora do campeonato, Antônia já carregava as chaves no bolso do robe.
Já estava abrindo a porta de vidro quando se deu conta de que quanto mais ela chegava perto do portão mais incompreensível ficava a voz. Na cozinha, embora num volume baixo, a voz era muito mais audível. Caminhou pela cozinha. Tentava identificar de onde vinha o pedido. Na geladeira, não... no freezer, não... no bebedouro, não... Tava frio. No armário já começava a escutá-la melhor.... no microondas, começava a ficar quente. No fogão, fervia. Só então notou que a tal voz vinha do bule. Aproximou o ouvido do vapor e já não era mais a voz. Era só o chiado do bule.
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Na última sexta-feira, Antônia acordou e pôs seu robe de sempre. Tomou uma chuveirada fria e passou hidratante no corpo. Dos dois bancos que haviam em frente ao balcão da cozinha, puxou o que mais usava e sentou-se, de forma que seu corpo ficava de costas para o portão. Antes de acomodar-se, não posso deixar de mencionar, ela destrancou-o e deixou-o completamente escancarado. Esperou com
um bule de chá de gengibre.
Ouviu palmas baixas e compassadas. Controlou a curiosidade e continuou esperando de costas para o portão aberto. As palmas foram ficando mais rápidas e altas, até um ponto em que Antônia não podia mais aguentar não olhar. Virou-se subitamente e sua xícara escorregou de sua mão, espatifando-se no chão. Mas não havia ninguém. Limpou os cacos de porcelana do chão e foi pegar a outra xícara da cozinha. Sentia um vazio avassalador no peito.
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Do outro lado da cidade o ex-namorado de Antônia, que era professor, gozava sua folga de sexta. Num momento aleatório do dia ele pensou que, há um tempo atrás, numa hora dessas, ele renunciaria àquele sagrado dia de jogatina para atravessar a cidade e visitar sua ex-namorada Antônia. Suspirou aliviado.
Fruiu de sua sexta-feira tranquilamente, bem como de todas as outras sextas-feiras até o fim de sua vida, sabendo que sua alma não era mais sugada por Antônia, aquela doida fuleira, pensou ele.

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