Trítono

Quando era adolescente, Roberto de Jesus foi até a encruzilhada mais próxima de sua casa às três da manhã de uma sexta-feira. O ambívio encontrava-se completamente estéril e silencioso. As luzes dos postes eram de um incandescente precário. A iluminação amarelada vacilava em realçar os pontos da rua menos sombrios, tornando o ambiente simbolicamente torvo. Ele sentou no centro do cruzamento. Como ia enterrar a caixa do feitiço? A rua era toda asfaltada. Resolveu aguardar o capeta com a caixinha nas mãos.
Abriu-a para conferir se nada estava faltando. Uma foto 3x4 dele. Confere. Pó de cemitério. Confere. Ossos de gato preto. Hesitou por um momento. Não sabia de nenhum lugar onde um gato preto havia sido enterrado e a ideia de matar um gatinho para conjurar o demônio causou-lhe arrepios. Usou os ossos da galinha do almoço. Deve servir, pensou.
Algumas dezenas de minutos se passaram. Já esperava há quase uma hora quando exclamou, irritado:
- Porra! Não devia ter usado ossos de galinha!
Ouviu, ao fundo, passos discretos. Virou-se lentamente e localizou, andando no canto mais escuro da rua, uma mulher. Ela deu meia volta quando notou que foi vista, mas foi pega de surpresa pela súplica desesperada do homem.
- Não! - Gritou. - Eu estava brincando sobre a galinha! Usei os ossinhos de um gato preto de verdade. Por favor, não vá embora!
A mulher virou-se para ele novamente, expressamente enojada com a confissão.
- Você matou um gatinho? - Perguntou ela, com desprezo.
- Matei sim, eu juro! - A voz de Roberto saiu trêmula. Era óbvio que estava mentindo.
Ele forçou a vista para identificar as feições dela, ligeiramente perturbadoras sob a luminosidade baixa da encruzilhada.
- Ainda podemos negociar? - Questionou ele.
- O quê? - Ela não tinha escutado bem a pergunta devido à distância entre os dois. Mas ele entendeu como se ela quisesse saber o que ele queria barganhar.
- Eu quero ser um grande guitarrista. - Respondeu. - Ofereço-lhe minha alma em troca, oh, minha senhora das trevas. - E fez uma genuflexão.
Ela fitou-o, desconfiada. Após alguns segundos, indagou:
- Cadê a sua guitarra?
- Em casa. - Ele olhou para os lados, meio sem jeito. - Fiquei com medo de me roubarem.
Ela prensou os lábios para não rir e semicerrou os olhos para conseguir enxergá-lo na penumbra. Considerou, por fim, que o rapaz não representava perigo algum. Andou na direção dele até alcançá-lo.
Ela usava meia arrastão e uma jaqueta de couro. Só agora ele podia ver que ela carregava algum instrumento no ombro, dentro de uma bag fina. Provavelmente era uma guitarra.
- Você não vai me beijar para selarmos o pacto? - Perguntou Roberto, inocentemente.
Ela respirou fundo para não perder a paciência.
- Mano... Eu moro ali no próximo quarteirão. Só parei naquele canto porque tava com medo de você ser algum estuprador.
- Ah. - Ele pareceu decepcionado.
- Vem comigo - ela disse. - Eu te ensino a tocar guitarra.
- Você sabe?
- Acabei de voltar do show, cara. Vamos logo, estou cansada. - Disse ela, já seguindo caminho.
Ele aprendeu a tocar com ela e, após muito treino, Roberto de Jesus se tornou um guitarrista internacional muito famoso. Mas quando morreu, aos 27 anos, foi direto para o inferno.
Satanás aceitava ossos de galinha também.

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