Mateus, fleumático e sem amor

- Foram dez anos, sabe? Quer dizer, eu realmente pensei que a gente... - Nina soluçava.
- Nina, aceitar uma separação é um processo. Não se culpe por ele ter ido embora primeiro.
- Não consigo suportar a dor. Parece que tem um buraco negro dentro do meu peito...
(Silêncio).
- Carol, o que você me diz sobre a Mental? - perguntou Nina, abruptamente. - Eu vi a propaganda deles enquanto esperava o consultório renderizar ainda agora -, explicou.
- Nós fechamos sociedade com eles no ano passado. É uma das empresas globais que mais investem em P&D no ramo da neurociência e da psiquiatria. Existem tanto programas recreativos como terapêuticos lá. Eu vou verificar quais tratamentos seu plano cobre. (Silêncio). Você pode acessar na sua caixa de entrada.
Nina sentiu o celular vibrar. Havia acabado de receber um e-mail de Carol, que adiantou-se:
- Esse procedimento "ressignificando o trauma" é bom, mas não é aconselhado para traumas recentes como esse seu. A recordação gráfica pode ser tão vívida que pode atingir um grau de estranheza. Alguns pacientes descreveram a experiência como "parecida com um pesadelo", além de relatarem piora nos sintomas de ansiedade e depressão. Não posso liberar pra você ainda.
- Tudo bem, eu não estava pensando nesse... - respondeu Nina, examinando os itens do e-mail. - E aquele "rememoração autônoma"? Não tá aqui na lista.
- É um serviço recreativo, por isso não coloquei aí. Você quer experimentar? Posso te transferir no fim da sessão. Você ainda tem 30 minutos.
- Pode me transferir agora?
- Tudo bem. Vou te redirecionar para algum especialista brasileiro disponível. - A psicóloga consultava uma espécie de tablet que cada médico da Virtual Medicine Brasil possuía para manejar os atendimentos por projeção dimensional.
- Vou precisar desconectar esse ambiente. Você pode aguardar aí mesmo.
- Obrigada, Carol.
Nina esperou na poltrona em que estava sentada, que ficava acoplada ao chão da saleta. Num instante, a sala estava totalmente vazia. Uma voz eletrônica e simpática ecoa no quarto.

"Paciente, aguarde na área neutra enquanto o consultório é renderizado.
Paciente, aguarde na área neutra enquanto o consultório é renderizado.
Paciente, aguarde na área neutra enquanto o consultório é renderizado.”

Nina viu diante de seus olhos a projeção de um novo ambiente despixelar-se. Um homem alto se materializou na sua frente.
- Nina? Eu sou o Dr. Pedro - apresentou-se o homem, cordialmente - esse é o Robson.
Robson era um computador com design retrô.
Nina estava agora num dos consultórios da Mental Institute. Enquanto reprogramava a máquina para acessar remotamente a estrutura neural de Nina, o médico explicava:
- Olha. O procedimento da rememoração autônoma não é exatamente uma reprodução do que você viveu. A memória humana não guarda todos os detalhes da experiência minunciosamente. Ele - olhou para Robson -, é o responsável por preencher alguns lapsos na sua rememoração. Ele também poderá interagir com você caso esses lapsos ocorram na lembrança do comportamento de outras pessoas que por acaso estejam presentes na sua recordação. Devo adverti-la de que lembranças antigas tendem a distorcer com mais facilidade.
Nina assentiu com a cabeça. Dr. Pedro continuou:
- Suas atitudes e comportamentos durante o processo devem ser parecidas com aquelas que você teve de verdade na ocasião. Dessa forma os acontecimentos serão mais verossimilhantes à lembrança e o Robson manterá o rumo lógico. Mas não se preocupe - acrescentou -, se a inteligência artificial se sentir confusa, ainda assim, vai se basear nas suas percepções implícitas para manter a experiência estável. Entendeu?
- Entendi. - Por dentro ela se sentia ligeiramente nervosa.
- Pode fechar os olhos e relaxar. - Declarou o médico.
(Silêncio).
Nina tomou um susto quando se deu conta de que acordara no banco do carona do carro de seu ex-marido. O vento esvoaçava-lhe o cabelo. Olhou pela janela do seu lado, que encontrava-se aberta. Estava numa rua cheia de folhas secas no chão e árvores alaranjadas ao redor.
- Que merda é essa? - bradou indignada. - Eu nunca andei nessa rua!
- O que? - Perguntou Mateus, seu ex-marido, calmamente, enquanto dirigia. Ela virou num sobressalto e encarou-o pela primeira vez.
- Mateus, eu sinto tanta saudade de tu, coelhinho! - não pôde conter a emoção.
Ele dirigia como se ela nada tivesse dito. Um raiva descontrolada subitamente inflamou o peito de Nina, transfigurando sua feição complacente e amorosa numa expressão rude e abrasiva.
- Por que tu me abandonou, seu ingrato? - questionou subitamente.
Mas Mateus continuava dirigindo tranquilo.
- Tu não colocou o cinto - proferiu Mateus, finalmente, como se a conversa tivesse começado agora.
Nina fitou-o em silêncio e recobrou o controle. Lembrou do que tinha respondido na ocasião e repetiu teatralmente:
- Se o motorista não coloca o cinto eu não coloco também - e deu um sorriso nervoso que falhou em parecer autêntico.
Ainda assim, Mateus (que era o Mateus da memória de Nina e que também era o Mateus personificado pela inteligência artificial) deu uma gargalhada gostosa, exatamente como na lembrança. Nina recordava com paixão essa gargalhada. E aqueles dentes lindos. E aquela boca... agora ele vai dizer que eu mato ele de rir,
lembrou ela.
- Tu é engraçada. - Sorriu simpaticamente para ela e então sua expressão descansou no mesmo feitio desinteressado que tanto lhe era natural.
Nina tinha escolhido especificamente essa memória porque se tratava da ardente comemoração do aniversário de um ano de casamento do casal. Começou a desabotoar a camisa de cetim nude sem que ele notasse. Já ia pedindo para Mateus encostar o carro quando ele repentinamente declara:
- Perdão pela paisagem. Mas é que você olhava tanto pra mim quando estava comigo que não prestava atenção em mais nada. Eu tive que encontrar no meu banco de imagens um cenário que mais tivesse valor sentimental para você. Escolhi o outono de When Harry met Sally. Sei que você adora esse filme.
Nina parou de desabotoar a camisa na mesma hora.
- Não, não. A gente não fala sobre esse filme nessa lembrança. - refletiu ela, coçando o queixo.
Ele começou a fitá-la enquanto ela pensava. Nina sentiu-se incomodada.
- Tu pode olhar pra frente? - reclamou, apontando para o para-brisas. - Vai acabar batendo em alguma coisa.
- Não tem nada nessa rua. Não vamos sofrer nenhum acidente. - (Silêncio). - A não ser que você lembre de algum agora. - acrescentou, inexpressivo.
Nina examinava-o, atordoada. Assustou-se com a semelhança desse Mateus holográfico com seu ex-marido Mateus. Era absolutamente o mesmo olhar perdido e o mesmo modo de falar genuinamente desinteressado. Mas era como se só agora ela enxergasse o quão esmagadora era sua indiferença. Respirou fundo e insistiu:
- Encosta o carro.
- Por que?
- Quero fazer uma coisa.
Mateus estacionou perto de umas árvores. Nina levantou de seu banco e sentou no colo dele. Começou a rebolar a bunda em seu membro por cima da calça jeans. Segurou-lhe o rosto com firmeza e lambeu-o do queixo quase até a raiz do cabelo. Mateus exasperou-se.
- Por que tu só pensa nisso o tempo todo? Eu pensei que você fosse me falar algo sério.
- Ele não disse isso! - gritou Nina, apontando o dedo na cara de Mateus.
- Ah, mas ele queria muito dizer. - disse Mateus, sarcasticamente.
(Silêncio).
- Ele nunca me amou, Robson? - a pergunta saiu trêmula de sua boca, quase como uma afirmação.
Mateus (ou a personificação dele) continuava fitando-a, imperturbável. Nina abriu a porta do motorista quase sem forças. Mal colou o primeiro pé na rua, acordou na poltrona do consultório. Emocionalmente abalada, assustou-se com a vibração de uma nova notificação no celular.
Nina recebeu o seguinte e-mail:

“Você me deixou excitado e eu me apaixonei.
Robson”.

Um comentário:

  1. Simplismente é surreal como eu pude sentir cada momento pelo qual a Nina de forma palpável, é como se eu tivesse sido transportado pra essa dimensão.
    Obrigado pela experiência

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